Sobre atropelamentos
Não sou místico, supersticioso, profeta ou académico do futebol, no entanto, há algum tempo que temia que a seleção portuguesa fosse atropelada pelos alemães. E o dia começou mal. Rei, o empregado do bar de sucos que sabe o meu pequeno almoço de cor e – admito – percebe de futebol, disse-me: “Vai ser três a zero para a Alemanha”. O mal estar instaurou-se e, ao abrir o jornal, vi um artigo sobre a paixão dos jogadores alemães pela velocidade dos carros, o Ferrari de Özil e as duas vezes que o treinador Joachim Löw foi apanhado em excesso de velocidade.
Talvez fosse apenas uma associação feita pelo meu subconsciente, afinal, vivo numa cidade onde os atropelamentos são a primeira causa de morte em acidentes de trânsito.
No final do jogo, o comentador brasileiro, que me deixou a espumar de nervos, porque só falava da importância de um quinto golo alemão para se alcançar a maior goleada desta Copa, confirmou os meus receios e, também ele, passou por cima de mim sem clemência ao fazer o balanço final da partida: “Portugal foi atropelado pela Alemanha.”
Mundial 2002, és tu?
Um penalti inexistente, um árbitro incapaz, um defesa expulso e tresloucado que, tendo em conta o seu historial de violência e de pontapés em adversários, deveria tomar ansiolíticos ou ficar a ver o jogo no quarto de hotel, um guarda-redes desconcentrado, dois jogadores lesionados, um penalti por marcar a nosso favor, uma equipa meio perdida, errática, a apanhar do ar. Há dias em que é melhor nem sair de casa.
Num momento de maior desespero com o jogo, pensei no descalabro do mundial do Japão e da Coreia, quando tínhamos um treinador de muletas que chorava em vez de liderar, jogadores cansados da borga do estágio em Macau e um João Vieira Pinto pugilista, que espetou um soco nas costelas do árbitro. Não, não é possível, esta equipa e este treinador são diferentes, mas, e perdoem-me o fatalismo luso, fiquei com a impressão de que tudo o que tinha para correr mal acabou mesmo por correr mal nesta partida. Também é preciso dizer que, ainda que as coisas corressem de feição, a Alemanha ganharia pelo menos oito de dez jogos disputados contra Portugal.
Questões éticas
Irritado com o árbitro, com a FIFA, com os jogos à uma da tarde, penso: por que diabos eu e tantos milhões em todo o planeta estamos tão ligados a essa coisa chamada Copa do Mundo se é organizada por uma associação que repetidamente se mostrou corrupta, gananciosa, ditatorial, mais interessada nos patrocinadores do que nos jogadores ou no público? Uma análise fria e justa levar-me-ia a não querer acompanhar a Copa do Mundo, a não vibrar com ela. Não me parece nada bem que uma entidade suspeita e daninha controle uma paixão universal como o futebol e a conspurque com tanta frequência para proveito próprio. Penso que tenho de pensar melhor nisto. Mas só depois do Mundial, porque há algumas coisas, em nós, difíceis de mudar e porque…
… baby, é o Campeonato do Mundo!
Imagino que, em todo o planeta, mulheres (e alguns homens) se queixem do tempo que os maridos e namorados dedicam ao Campeonato do Mundo – ele é coleção de cromos, troca de repetidos, vários jogos por dia na TV, leitura de jornais, conversas com amigos, taxistas e desconhecidos.
Eu, que no decorrer do ano apenas vejo finais e jogos clássicos, altero o meu comportamento ponderado e torno-me num sôfrego consumidor de tudo o que seja Copa do Mundo, o que me levou a ouvir, este fim de semana, quando via o Suíça – Equador: “Não me digas que agora, durante um mês, esta vai ser a banda sonora cá de casa.” Respondi calmamente que sim. Antes da Copa do Mundo tive o cuidado de explicar à minha mulher que este é um evento único, bissexto, que me arrebata e me faz reviver a infância. Mais: enquanto jornalista e escritor há algo de nobre e único quando temos o privilégio de escrever sobre um Campeonato do Mundo. Contei-lhe, para dar um exemplo da minha alegria e entusiasmo, como durante o Mundial de 2006, vivendo em Espanha, acordava todos os dias feliz porque ia ler as crónicas de Santiago Segurola, no El País, e, ao contrário do que acontece quando a vida corre normalmente, começava a ler os jornais pela secção “Campeonato do Mundo”. E se por acaso não me expliquei bem, recorro agora aos mexicanos do anúncio da cerveja Sol para o Campeonato do Mundo de 2010. É que é mês de Copa, baby.
Frases do dia
“Esse Pepe só podia ser de Maceió.”
Brasileira, depois da expulsão do defesa, referindo-se à capital do Alagoas, estado com maior taxa de homicídios e conhecido pelos seus matadores e ajustes de contas estilo faroeste.
“Levanta, sacode a poeira e dá volta por cima”
Conselho de um amigo brasileiro – para mim e para a seleção
A Copa dos outros
Javier Jiménez Barca escreve sobre as tensões raciais no futebol brasileiro: do tempo em que punham pó de arroz no rosto dos jogadores negros até aos dias desta Copa, em que os heróis na relva são mulatos ou negros, mas nas bancadas das arenas milionárias só se veem brancos. Para ler no El País, edição Brasil.
O desassossego da derrota
“Não sei o que fazer comigo”, cantam os White Stripes. Retiradas as conotações sexuais da letra e do vídeo, bem que podia ser o hino da seleção após o jogo com a Alemanha.
Put the cream
Já se sabia que a comunicação entre visitantes da Copa e brasileiros iria ser complicada porque inglês, francês, espanhol ou qualquer outra língua não costumam ser idiomas dominados pela população local. É notório que essa insuficiência tem sido mitigada pela boa vontade e a mímica dos anfitriões. Mesmo assim, um jornalista alemão, que procurava chegar ao miradouro do Pão de Açúcar, foi levado até um supermercado de Copacabana com o mesmo nome.