Caro senhor Rubem Fonseca,
Começo a escrever-lhe na derradeira tarde do ano. O calor descarna a alma. E o mar não serviria de consolo, está sujo, morno, sobrelotado. O senhor sabe como esta data ateia exageros passionais, dispara pistolas e engravida menores. Não se está bem lá fora. O Rio anda sobreaquecido. Famílias torram ao sol de Copacabana para guardar lugar debaixo do fogo de artifício da meia noite. Vendem-se perus a 320 reais nas lojas para senhoras que estudaram em França. Acabou-se a água no supermercado, os cigarros na tabacaria e moleques patrocinados por marcas de cerveja preparam-se para vender latas noite dentro. Tudo está inchado e quente. É um bom dia para um romance que acabe em homicídio.
Escrevo-lhe, no entanto, para informá-lo de uma investigação e de uma descoberta. Desde que passo o révellion no Rio, suspeito que os personagens dos seus livros saem para a cidade no último dia do ano. Aproveitam as multidões e o abuso coletivo de substâncias para se submergir na torrente da festa, satisfazem arrebatamentos, fazem justiça e injustiça pelas próprias mãos.
Ainda há pouco entrei num shopping com senhoras ricas, de rolos na cabeça, que faziam compras na pausa do cabeleireiro, e tive a certeza de que uma delas corria o risco de, mais tarde, ser disparada contra a parede por um tiro de caçadeira, numa festa grã fina, invadida por bandidos do morro, como no conto “Feliz Ano Novo”.
Nas ruas, havia um entusiasmo comercial de última hora. E mais mendigos do que o costume. Procuravam as migalhas dos abençoados com esgoto e celular 4 G. Talvez por isso me tenham aflorado ao ouvido, vindas não sei de onde, as palavras do Cobrador num dos contos que o senhor escreveu: “Tão me devendo colégio, namorada, aparelho de som, respeito, sanduíche de mortadela no botequim da rua Vieira Fazenda, sorvete, bola de futebol”.
Não é a primeira vez que isto me acontece. Vejo e escuto personagens dos seus livros na rua, partilho bancos de van, quase fui atropelado, durante um passeio noturno, por um psicopata que fugiu de uma das suas antologias. Tudo isto começou no meu primeiro révellion no Rio. Só acontece uma vez por ano, é verdade, mas repete-se desde então. Cheguei a pensar que seria alguma paixão ou transtorno obsessivo – como aquelas que assolam os seus personagens. Mas não participo em campeonatos de lançamento do anão nem penso em mastigar outro ser humano após comer um olho de coelho.
Seja loucura, patologia ou maldição, garanto-lhe que encontro todos esses fesceninos a cada passagem de ano.
Enquanto lhe escrevo, já anoiteceu, a cidade foi tomada pela calmaria da espera, prepara-se para o grito. Uma garota de programa equilibra-se no salto diante do espelho, o matador limpa a carabina no quarto de hotel, o pai de família faz o laço do smoking antes de partir para uma festa de swing. Todos esperam euforia e prosperidade. Querem ficar sem pé e voltar salvos pela manhã. Têm, nesta cidade, nesta noite, a cama, o ringue e a pista de corridas. Posso ouvi-los dizer as palavras que o senhor escreveu:
“Quanto a mim, o que me mantém vivo é o risco iminente da paixão e seus coadjuvantes, amor, ódio, gozo, misericórdia”.
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Volto a escrever-lhe agora, na manhã do primeiro dia do ano, para finalizar o relato da minha investigação. Ontem, não fui para a festa. Deitei-me na pedra da sala para afrouxar a temperatura e confiei nos fogos de artifício da meia noite como alarme despertador. Acordei com os silvos da pólvora subindo aos céus. Explosões e gritos. Copos ao alto. Tomei um duche, fiz a barba, vesti uma camisa lavada e não saí para a rua. Estava pronto para iniciar a investigação. Lá fora, a cidade transpirava muito. Uns dançavam por amor, outros esfaqueavam por ciúme. Fiquei em casa, mas não quieto. Entrei em cada um dos seus livros, guardados nas estantes, e posso garantir-lhe que estavam desertos. Durante toda a madrugada atravessei ruas do Centro sem um carro, visitei cenas de crime com sangue fresco embora sem cadáver, quartos de motel que ainda cheiravam a sexo. Não havia ninguém.
Começaram a regressar de manhã, um por um, ébrios e saciados. O último foi Mandrake, com o charuto murcho e o sorriso amarrotado. Levava alguém pelo braço, a última cartada numa noite longa. Piscou-me o olho e fechou a porta dizendo: “Deixo as mulheres bonitas aos homens sem criatividade. Feliz ano novo, camarada vascaíno”.
São também esses os meus votos para o senhor.