Um dos principais contributos da Revolução de Abril para o tecido da dança em Portugal foi o de ter ultrapassado um problema que se vinha colocando desde o início do século XX e que fora exacerbado pelas políticas culturais do regime do Estado Novo: o de criar o bailado português. Este problema, que autores como Manuel de Sousa Pinto, Pedro Homem de Melo e Tomás Ribas iam reproduzindo sob diferentes matizes e preocupações distintas, fechava as práticas de dança sobre elas próprias, gerando programas nacionalistas de bailado, para circulação interna, muitas vezes regional, e raramente para fora das fronteiras, como foi o caso dos Bailados Verde Gaio. Em todos os casos, tratava-se então de conceber e realizar planos que representavam e reproduziam um certo Portugal histórico, rural e genuíno. Todavia, tais adjetivos – subordinados a intenções historicistas e folclóricas – aconteciam numa nação que se ia confrontando com a turbulência do mundo, quer sobretudo por causa da Guerra colonial, quer da emigração. Era uma estranha inevitabilidade, essa a de uma dança em busca do seu próprio perfil, como se esse perfil tivesse de ser anterior às práticas do corpo. Lucidamente, Tomás Ribas considerava que só através do ballet clássico seria possível superar artisticamente as danças populares portuguesas. “Só assim poderemos almejar verdadeiras obras-de-arte” escrevia ele. E todos, de uma maneira ou de outra, lamentavam a falta de formação em dança: a inexistência de escolas com programas de formação técnica e de escolas de pensamento.
Claro que a Fundação Calouste Gulbenkian, ainda antes do 1974, começou a ter um papel fundamental para a deslocação do tal problema do “bailado nacional” para a da criação de uma coreografia outra, patrocinando a vinda de coreógrafos estrangeiros como o britânico Walter Gore, o estímulo à produção teórica (publicando, por exemplo, a “História da Dança” de José Sasportes) e o apoio ao encontro de jovens mestres de dança. Em 1976, dois anos depois da Revolução, na sequência do Grupo Gulbenkian de bailado, foi criado o Ballet Gulbenkian que acompanharia portanto o movimento de renovação coreográfica proporcionando o aparecimento de, não um novo “bailado português”, mas sim novos criadores portugueses como Vasco Wellenkamp e, nos anos 1980, Olga Roriz. Ensaiava-se assim uma outra linguagem do corpo, um outro modo de ligar o corpo à modernidade atualizando-o não por via de um nacionalismo estéril, mas sim pela potência da música e das capacidades expressivas e teatrais conjugadas com uma formação técnica mais robusta.
Entretanto, em 1977, seria criada a Companhia Nacional de Bailado que marcaria, do ponto de vista institucional, uma renovação estética e de elenco – neste âmbito sobretudo sob a direção de Jorge Salavisa em 1996 – com intérpretes muitos deles formados na escola de Dança do Conservatório Nacional e na Academia de Dança Contemporânea de Setúbal.
Abandonando a infrutífera busca do bailado nacional, a dança abriu-se, tornou-se plural, internacionalizou-se mais claramente e passou a revelar um outro corpo, ou, se quisermos, a trazer outros corpos aos portugueses.
Assim, digamos que, entre os anos 1980 e 90, a Revolução dos Cravos alastrou mais claramente para os universos da dança. Utilizo o plural justamente para reforçar a multiplicidade possível que se pode considerar no apuramento de uma realidade não homogénea. Por exemplo, os programas de preservação do património imaterial, que foram gizados após a Revolução de Abril, permitiram deslocar o ângulo folclórico, eminentemente nacionalista, para uma visão abrangente das diferenças culturais sob os auspícios da UNESCO. Ao mesmo tempo que, a partir de 1974, se assiste a uma proliferação de Ranchos folclóricos, outros programas de inclusão seriam trabalhados já no século XXI. A título de exemplo, a festa “Kola San Jon”, típica da comunidade cabo-verdiana, passou a fazer parte do Inventário do Património Cultural Imaterial de Portugal. De modo geral, por todo o território, novas práticas de dança, de influência africana, ou sul-americana, ou asiática, foram eclodindo, convivendo com práticas de movimento somático e terapêutico.
Também a dança teatral explodiu na sua diversidade, sobretudo a partir de finais dos anos 1980, com criadores como Vera Mantero, Francisco Camacho, João Fiadeiro e Paulo Ribeiro. O aparecimento de uma Nova Dança, com características experimentais e em muitos casos rebeldes tem acompanhado a representação e construção de um corpo que constantemente nos interpela, por via das questões da racialização, de género e ambientais. Atualmente, artistas como Marlene Monteiro Freitas, já com uma carreira internacional assinalável, revelam justamente a potência de uma poética de múltiplas influências, cosmopolita e politicamente engajada.
Tal não exclui a permanência do reportório académico-clássico que, na verdade, continua a preencher as temporadas de teatros nacionais atraindo um público fiel. Neste âmbito, há que referir também o reconhecimento internacional granjeado por muitos jovens bailarinos, cuja formação começou em Portugal e triunfou no estrangeiro, como é o caso de Marcelino Sambé formado pelo Conservatório Nacional de Lisboa e bailarino Principal The Royal Ballet em Londres. Num outro lugar artístico, bailarinos como Romeu Runa representam o modo como, a partir da Nova Dança, se vai forjando uma linguagem híbrida, de enorme entrega física, também contaminada pelo teatro e pela performance.
Hoje, finalmente, à distância de cinquenta anos, podemos olhar para as movimentações populares no dia 25 de abril como coreografias coletivas, com os seus pontos dramáticos junto do quartel da GNR no largo do Carmo, na Rua António Maria Cardoso e na Praça do Comércio. Na verdade, olhando os corpos insurgentes, o embate de forças, a circulação de energias, em suma, as grandes movimentações que convocam o espectador para a ação, esse olhar, dizia eu, é algo que a dança nos proporciona.
Ou seja, um dos contributos que a Revolução dos cravos trouxe ao universo da dança está no reconhecimento das possibilidades de movimento e nos modos de o pensar: possibilidades plurais, para corpos democráticos. A dança torna-se desta maneira espaço crítico de geração de ideias. J