Imagine-se a impossibilidade de voltar atrás a um passado da língua, à sua métrica, aos seus ritmos e harmonias, a uma prática jamais testemunhada, e mesmo assim desvendar o que nela se encerra, como se fosse outrora e sem deixar de ser o tempo que corre.
O trabalho do agrupamento Sete Lágrimas, de Filipe Faria e Sérgio Peixoto, está marcado por essa pesquisa, de algum modo presente desde os primeiros álbuns, como Lachrimae (2007), Silêncio (2009) e a série Diáspora.pt (2008-12).
É uma das mais puras, intensas e rigorosas investigações que levam a novos repertórios, através da localização de outras gentes, noutros tempos e lugares, e da representação e possível identificação do que é humano, e por isso tão próximo e comum, mesmo diferente e distante.
O seu mais recente projeto, Folia Nova, que se apresenta como “nova música antiga sobre poesia portuguesa dos séculos XV e XVI”, é exatamente o que promete: um regresso à poesia portuguesa dos anos de 1400 e 1500, descobrindo nas suas palavras a música e o tempo de cada um dos autores escolhidos, um tempo em que a própria língua também se afirmava, e, a partir daí, traduzir cada uma das líricas em novas e contemporâneas melodias, seguindo porém modelos da época.
Para Folia Nova, Sérgio Peixoto e Filipe Faria compõem doze novos vilancicos numa mistura de saberes e de instrumentos musicais de antes e de agora, usando como referência harmónica e rítmica as danças de origem pastoril da folia portuguesa, sobre poemas de autores anónimos, de outros menos evidentes como Joam de Meneses, João Roiz de Castel-Branco, Nuno Pereira e Pêro de Andrade Caminha, e ainda dos mais conhecidos Bernardim Ribeiro, Gil Vicente e Luís de Camões.
Das palavras surgem melodias, do seu significado a possibilidade de harmonia, e Folia Nova emerge deste modo, retomando o lado profano original do vilancico, uma das mais importantes e populares expressões da Península Ibérica ao longo de quase três séculos, da Renascença ao Barroco, a ponto de a sua fama e estima terem impregnado a liturgia e os seus ritos.
Eis assim o sentido de libertação de “Dicen que me case yo (no quero marido, no)”, de Gil Vicente, o espanto em “Amor loco”, de autor desconhecido, a interiorização de “Es tan grave mi tormento”, de Andrade Caminha, e a afirmação da memória de “Nunca foi mal nenhum mor”, de Bernardim Ribeiro.
A força dramática de “A partida que me aparta”, sublinhada pelos adufes, permite imaginar como este vilancico podia ter ecoado durante séculos, no mais popular da sua expressão, pelas montanhas da Beira Baixa.
Num álbum cheio de ‘momentos altos’, em que cada instante é vislumbre, resgate e revelação, o contrabaixo de João Hasselberg e os instrumentos ancestrais de sopro de Silke Gwendolyn Schulze, em particular o medieval douçaine, dão um contemporâneo leito ao mais antigo lamento de “Cuidados tan cansados”, de Nuno Pereira.
Camões e a obsessão da cativa que o tem cativo, entre melodia, percussão e madeiras, traduzem-se em lucidez nas “Endechas a Bárbara escrava”.
A instrumentação é aliás fulcral nesta viagem dentro do tempo e à volta dele: a flauta doce e o douçaine de Gwendolyn Schulze, o contrabaixo de Hasselberg, a vihuela, a tiorba e a guitarra barroca de Tiago Matias, mais as percussões, assobios e as vozes de Filipe Faria e Sérgio Peixoto.
E ainda o ‘descante de bandurra’, desenvolvido por Faria com o violeiro Orlando Trindade, a partir da viola beiroa e da perdida bandurra, instrumento semelhante ao alaúde, com seis pares de cordas e braço curto, que aqui regressa renovada.
Loa e as laudas de André Dias de Escobar
Neste percurso dos Sete Lágrimas, atente-se ainda ao seu álbum anterior, Loa, sobre laudas de André Dias de Escobar (c.1348-1450/51), em diálogo com os laudários de Cortona, do século XIII, e de Florença, do século XIV.
Editado no ano passado, Loa encontra o esquecido mestre em teologia formado em Viena (1393) que, como Filipe Faria o apresenta nas notas da edição em disco, foi abade do mosteiro de Santo André de Rendufe, comendatário de Rendufe e S. João de Alpendurada, bispo de Ciudad Rodrigo (1410), de Ajaccio (1422-1428), em França, e da cidade grega de Mégara (1428).
Foi também professor universitário e, acima de tudo, autor de impacto na Europa medieval, ”canonista insigne, conselheiro de Papas, culto, erudito, homem de letras e de virtudes.”
Resgatado pelos Sete Lágrimas na sequência da investigação do professor e musicólogo Manuel Pedro Ferreira, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, André Dias de Escobar – também conhecido como André Dias, Andreas Didaci, Andreas Hispanus, André de Rendufe, André de Lisboa ou Andreas Ulixbonensis – foi um “viajante infatigável” ao longo do seu século de vida.
Atravessou cinco reinados portugueses, de Pedro I a Afonso V, viveu a crise de 1383-1385, ciclos da peste e da fome, a emergência das cidades e dos seus mercadores, revelando-se uma “personagem surpreendente e apaixonante”, numa Europa em plena Guerra dos Cem Anos.
Durante séculos, o seu livro de 1435 foi usado nos serviços religiosos da confraria do Bom Jesus do antigo Mosteiro de S. Domingos, em Lisboa, o que permitiu preservar a sua essência, encontrando-se agora na posse da Biblioteca Nacional.
A coleção reúne laudas e cantigas espirituais, orações contemplativas para o “Rei dos Céus e da Terra”, na linha dos laudários italianos da época e das suas temáticas recorrentes – Mariana, Temporal, Penitencial.
A obra de André Escobar ganha de novo vida. Como explica Filipe Faria, o objetivo “era fazer nascer novas contrafacta – processo histórico de substituição de um texto por outro sobre uma determinada melodia –, propondo uma relação umbilical nova (ou mesmo potencial)” entre os textos de Escobar e a música dos laudários italianos.
Assim surgem as quatro peças cantadas reunidas neste álbum, mais as três versões instrumentais de “Die ti salvi, Regina”, “Laudamo la resurrectione” e “Regina Soverana”, que as intercalam.
Mais uma vez, a instrumentação leva longe a perspetiva, com os músicos Silke Gwendolyn Schulze (flauta dupla, douçaine, charamela) e Emilio Villalba (vihuela de arco, cítola, harpa, saltério, alaúde e viela), além das vozes, percussões e direção de Filipe Faria e de Sérgio Peixoto.
Loa teve parceria científica dos professores Manuel Pedro Ferreira, do Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical, da Universidade Nova de Lisboa, e de Blake Wilson, do Departamento de Música do Dickinson College, de Los Angeles, Estados Unidos.
A edição em disco de Folia Nova inclui o ensaio fotográfico “Partindo-se”, de Filipe Faria.