Se não tiver outra vantagem, o teledisco de São Horas de Matar fez muita gente (voltar a) ouvir Mão Morta, tal como aconteceu em 1992, com Mutantes S.21, o mais popular álbum que já alguma vez fizeram. Muitos ouviram a banda do Adolfo Luxúria Canibal para chegar à legítima conclusão de que não gostam. O que é muito natural: Mão Morta não é para meninos, muito menos este disco. Estamos no domínio do rock pesado, marcado por guitarras que se arrastam e uma voz cavernosa, que canta profecias de desgraça, um futuro de miséria e de luta, consequência de uma violência quotidiana extrema infligida aos cidadãos, de que os nossos tempos podem ser premonitóreos. O regresso aos tempos da serralharia de sons, como lhes chama o próprio Adolfo Luxúria Canibal, mas usando um método diferente: onde as muralhas de guitarras eram rápidas, com grandes malhas, são agora lentas, arrastadas, um pouco como os “desempregados famélicos que deambulam pela cidade” do cenário dantesco que traça. Alguns dos que hoje se chocam com os Mão Morta, talvez tenham achado graça quando, em 1992, o rapper de boas famílias, Gabriel o Pensador, lançou a canção-furacão Tô Feliz (Matei o Presidente), em que dizia: “Mas se você quer saber porque eu matei o Fernandinho/ Presta atenção sua puta escuta direitinho/ Ele ganhou a eleição e se esqueceu do povão/ E uma coisa que eu não admito é traição/ Prometeu, prometeu, prometeu e não cumpriu/ Então eu fuzilei, vá pra puta que o pariu”. Talvez o brasileiro tenha a habilidade disfarçar a sua mensagem através de uma forma bem-humorada de cantar, enquanto nos Mão Morta tudo tem um tom sério e grave. Mas a rigor a frase mais violenta que está em Hora de Matar é “ultrapassado o limite do ultraje/ Toda a violência é legítima autodefesa”. E quem o pode negar?O maior erro, neste e noutros casos, é retirar o tema do seu plano artístico, tirando ilações demasiadamente literais. Até porque esta é apenas a última das dez canções que compõem o disco conceptual (com princípio meio e fim) e ouvi-la isoladamente, como se sugere ao escolhê-la para teledisco/single, é passar diretamente para a conclusão. Ou, se preferirem, é uma conclusão precipitada.Pelo meu Relógio são Horas de Matar tem uma âncora lançada no tempo presente. Há um contexto concreto político, social e português. Mas a partir daí faz um devaneio futurista, quase apocalíptico de um rumo negro para onde o país e a sociedade podem caminhar. Apesar de tudo ainda não há bandos de desempregados famélicos, nem crianças mortas que falam com as suas mães. Não estamos no plano do real, obviamente, mas num futuro evitável, que, pessimisticamente, poderá estar próximo. Seguindo esta narrativa ficcional, aplicada ao rock’n’roll, o disco chega a um momento de clivagem, no tema Histórias da Cidade, em que o passado indica a saída: “Que resgata esses tempos de luta bem valente/ Em que que marchávamos sem temor contra a miséria”. Há portanto um caminho ficcional para um clímax que é o momento da libertação “das massas embriagadas pelo desespero”. Pelo meu Relógio são Horas de Matar é um dos melhores discos dos Mão Morta, sintomático e atuante, com “os pelos eriçados como navalhas”.
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