Os dois livros aqui considerados – Não Desfazendo, de Rita Taborda Duarte, Habeas Corpus, de José Rui Teixeira -, justificam que se fale em estranheza, e ainda bem. É sabido que pelo início do século XX um grupo de linguistas russos referiu-se à expressão poética considerando nela o seu estranhamento. Um leitor desses anos, se considerarmos a sua receção das criações artísticas, não é igual ao de hoje. Há todo um contexto cultural que se alterou. Este “outro” leitor, no caso de ser português, já terá lido Camilo Pessanha, Fernando Pessoa, Jorge de Sena, Herberto Helder, etc. Confronta-se com opções literárias diferentes como a da intelectualização das emoções ou da sentimentalidade (no caso do Modernismo) e da subjetivação da expressão poética (no caso do Pós-Modernismo).
No entanto, as relações ou jogos entre a sentimentalidade e a intelectualização ficam por vezes entretecidos, ganham derivas insuspeitas. Derivas ou – para recorrermos a um termo consagrado por um pensador pós-estruturalista, Gilles Deleuze – rizomas. Talvez seja de natureza rizomática a contorção expressiva a que alguns poetas recentes sujeitam a linguagem poética. Estaremos perante um pós-“pós-modernismo”? Como caracterizá-lo?
Tentemos uma resposta, tendo sempre presente aquela noção de estranhamento e, ainda, considerando algumas incidências expressivas, uma certa atmosfera semântica e imaginosa a que tentaremos dar relevo tendo em vista os dois livros que há pouco foram referidos.
O pós-estruturalismo – ficou já referido o nome de Deleuze – representa na filosofia contemporânea uma tendência para a recusa de uma subordinação à estruturação rigorosa do pensamento a partir de modelos que no caso da literatura seria a linguagem. Condena-se, então o chamado “imperialismo da linguagem”. Ora a poesia é precisamente uma das criações que assenta nela. E pergunta-se: “serve-se dela” ou “é linguagem”? A obra de Rita Taborda Duarte “Não Desfazendo” de certo modo, e até pelo título, parece vir ao encontro desta pergunta.
“Não Desfazendo” é um livro de 500 páginas onde se reúne a poesia que a autora escreveu ou publicou. O primeiro verso que nele encontramos é este: “Um poeta tem que escrever”, para mais adiante afirmar:”O poeta tem de bater com estrondo à porta da linguagem / trancá-la bem por dentro”. Todo o poema deflui para um propósito de desconstrução, de violência expressiva, de destempero ou, antes, desespero: “Não é possível fazer poesia com restos de palavras mastigadas / que azedam num instante, ainda mais se está calor. […] Escrever de uma vez a sombra ferida das palavras / e cuspir-lhes em cima, / na lousa rasa empobrecida do poema”.
Há uma disfunção da escrita. Através de fraturas ou roturas oscila-se entre a “ortografia do silêncio” e a “ociosa lamúria do verso”. Por outro lado, há um acento disfórico que conduz a ironia em direção a uma angustiada expressão do grotesco ou se apazigua num envolvimento lúdico extremamente engenhoso e eficaz. É o caso que se passa a exemplificar nestes versos através do jogo implícito ou explícito entre “nobreza”, “sangue” e “seiva”: “só me deixaste a nobreza / das árvores de seiva azul”.
Outra nota dominante nesta poesia é a desmetaforização. A desmetaforização, como nota Fernando Guerreiro que assina um sugestivo e problematizante prefácio do livro, tende a ser substituído pela catacrese que é uma figura retórica para a denominação indevida.
Já aludimos ao facto de na poesia da Rita Taborda Duarte se fazer sentir uma tendência omnipresente de desconstrução: “Ler é deixar de ver o real / a desabar”. Talvez seja este sentido de ruína, de perda, de fratura o que faz com que haja no conjunto dessa poesia algo que a aproxima do Expressionismo. Mas t udo isto pode conduzir a um tão belo poema como “Ladainha da mãe Penélope à filha”, retomando-se aqui o imaginário da poesia homérica. Eis uma sua passagem: “para quê entrelaçar a bordadura do tempo / e macerar a polpa dos dedos? // Se for para fazer então desfaz . / Desfaz, filha, uma mortalha cerzida ou um sudário. / Um sudário, sim é muito bom de ser desfeito até / à teia puída do pano. Muito boas de esgarçar / as costuras de um sudário. Amortalha o enfado / da espera nos fiapos do velame; melhor é entristecer / que entreter as mãos aos nós que nem à raiva / dos dentes se desatam. // Desfia tudo, até à refrega da linha ao último / puir do fio do linho desfaz o tempo delido na memória. / Aí quem sabe? Pode ser que nem parta, ainda.