Diz que é um texto que nunca o cansa, uma das suas grandes paixões. E às palavras junta os atos. Depois de ter lançado, em 2003, uma primeira tradução em verso da Odisseia, Frederico Lourenço regressa à obra homérica, um dos marcos fundadores da cultura Ocidental. Entre as duas edições passaram-se 15 anos, muitas aulas, muito saber adquirido e três volumes traduzidos da Bíblia grega. Tudo isso foi transposto para esta nova tradução, em que procurou ser mais rigoroso na linguagem e no respeito pelo texto, a que juntou, também, inúmeras notas, o que não fez em 2003. «Quanto mais se estuda, mais a Odisseia se revela inesgotavelmente fascinante”, afirma Frederico Lourenço, já distinguido com o Prémio Pessoa justamente pelas suas versões portuguesas dos grandes clássicos do grego antigo. Antes de se lançar no quarto volume da Bíblia, que sairá no segundo semestre deste ano, dedicou três meses a este volume. “Mesmo trabalhando das 7 às 23 horas, foram semanas paradisíacas, quase férias”, garante. Como Ulisses na Odisseia, Frederico Lourenço regressou, com esta tradução, a casa.
Jornal de Letras: O que há de novo nesta tradução da Odisseia?
Frederico Lourenço: A intenção é diferente. Em 2003, o meu objetivo foi dar a conhecer o poema a quem se interessasse por poesia. Em Portugal, na altura, havia apenas duas traduções em prosa, feitas a partir do francês. Ou seja, a maior parte das pessoas não fazia ideia do que era ler Homero. Dei mais atenção à beleza da linguagem, espelhando a transparência e a simplicidade do original. As notas não faziam sentido nesse contexto, também porque teriam de desmontar a ideia de um poema imbuído da perfeição absoluta.
E não está?
Quando vemos a Odisseia ao microscópio compreendemos, mais até do que na Ilíada, que a perfeição absoluta que esperamos de um texto clássico como este não está lá. Nem tudo foi planeado até ao último pormenor. Há incoerências e inconsistências típicas da tradição oral, menos preocupada com a lógica e a verosimilhança. Mas como está tudo tão bem disfarçado, pode ler-se o poema e não se dar por isso. Com as notas no final de cada canto, esta nova edição permite ler a Odisseia como um poema deslumbrante e como um problema crítico que ocupa estudiosos há muitos séculos.
De facto, além de esclarecerem questões de geografia, mitologia e semântica, as notas mergulham o leitor num longo historial de polémicas…
Tentei ser o mais isento possível em relação às diversas teorias, cheias de espinhos, que existem sobre Homero, mas houve momentos em que tive de tomar partido, o que não acontece quando não se comenta o texto. Acrescentei referências bibliográficas para os leitores seguirem a polémica e chegarem às suas conclusões. Mas a verdade é que, entre 1989, quando comecei a dar aulas na universidade, e o fim deste trabalho, muitas ideias seguras deixaram de o ser.
Tem mudado de campo nas polémicas?
Sobretudo na questão de se estar perante o registo escrito de uma composição oral. Cada vez mais me convenço de que estes textos foram compostos com a ajuda da escrita, mesmo que por um poeta vindo da tradição oral. Na sua macroestrutura, a Odisseia aponta para uma utilização da escrita, para a hipótese de se poder consultar o que se fez. É, no entanto, um texto para ser ouvido. Por isso, continuei a esforçar-me para que o som desta poesia sobressaísse, embora, nesta edição, quando foi preciso, tenha optado por termos mais rigorosos em detrimento do poeticamente mais bonito. A tradução da Bíblia tornou-me uma pessoa mais obsessiva com o rigor e a fidelidade ao original.
Traduziu Homero, está a traduzir a Bíblia grega. Podemos falar de uma missão?
Há nestes trabalhos a vontade de mostrar a importância não só destes textos, mas do conhecimento desta língua. Isto é particularmente importante numa altura em que o ensino do grego antigo, desaparecido do Secundário, está ameaçado no Ensino Superior. É terrível imaginar um país em que ninguém consegue ler Homero ou a Bíblia em grego antigo.
O que mais o fascina neste texto a que regressa com tanta dedicação?
A sua capacidade de nos fazer pensar sobre a natureza humana. Na Odisseia todas as pessoas são intrinsecamente contraditórias. É um poema que está permanentemente a desarrumar as nossas convicções sobre o humano e o divino, a ética e a moral.