Mindelo, as suas paisagens, as suas gentes, a sua História, constituem-se como tema central do último romance de Germano Almeida, Do Monte Cara Vê-se o Mundo. A importância que o espaço desempenha na economia desta narrativa está desde logo espelhada no título que nos dá conta do olhar abrangente que se lança, a partir do Monte Cara, sobre a cidade, que surge aqui como símbolo de plenitude e totalidade. Com efeito, partindo e sustentando-se nas estórias de uma galeria de personagens, a narrativa elege o Mindelo como palco mas sobretudo como protagonista do entrecho.
O romance agora publicado prolonga o ciclo que Germano Almeida dedicou à principal cidade da ilha de São Vicente, no qual se inclui o título As Memórias de um Espírito (um texto que vale a pena ler ou reler), em que o autor desenha um quadro delicioso e bem-humorado da vida social e amorosa dos mindelenses, temática que neste livro retoma. Em Do Monte Cara Vê-se o Mundo a efabulação constitui-se como um longo diálogo, que se estende por quatro centenas de páginas organizadas em 12 “tímidos” capítulos, que de tão discretos não chegam a cortar o ritmo do discurso, entre o narrador e Pepe, o velho mindelense que encontrou o amor tardio junto da jovem e bela Júlia, filha da sua antiga namorada.
Conduzidos pelo narrador, que se assume como alter ego do escritor, partilhando igual interesse pela escrita e pela leitura e remetendo-nos para a obra publicada do autor empírico, com uma referência explícita ao romance, de 2004, O Mar na Lajinha, vamos acompanhando as conversas dos dois homens, durante os seus passeios diários matinais à beira-mar, entre a Lajinha e a Enacol, com incursões pontuais pelas ruas interiores da cidade.
Através das histórias dos amores e desamores das personagens que em torno de Pepe gravitam (Guida, a mãe de Júlia, mas também, Yara, a provocante e atrevida jovem que em vão desafia o narrador para confraternizações mais íntimas dando a Pepe uns inesperados momentos de alegria e prazer; Marquinho, irmão de Júlia, que se viu condenado à emigração, que ao invés de riqueza lhe trouxe o amor da holandesa Misa) vai-se mapeando a cidade do Mindelo, construindo-se a cartografia evolutiva da cidade, assinalando-se as marcas dos tempos, numa sobreposição de rastos de formas de vidas passadas e presentes.
A intriga alicerça-se a partir das narrativas de Pepe que se desloca pelas ruas e praças recordando as suas histórias, porque, como nos confidencia o narrador, “Pepe tem de cor uma espécie de inventário” do Mindelo. A cidade é, pois, vista e descrita através de um olhar caminhante, que nos dá conta não só das alterações da sua geografia, mas igualmente das representações simbólicas dos locais. Particularmente significativa é a distinção, inúmeras vezes afirmada, entre duas zonas bem diferenciadas: a Morada, a zona nobre da cidade com as suas casas mais requintadas, os hotéis, os bares e cafés chiques, frequentada por turistas e mindelenses mais abastados, e as fraldas da Morada, espaço onde fervilha a vida noturna recheada de festas, brigas, petiscos suculentos servidos em locais de duvidosa higiene. Tendo nascido numa “espécie de zona de fronteira”, Pepe é considerado “meio Morada meio fralda”, circunstância que lhe confere o conhecimento e a pertença aos dois universos.
As caminhadas e as conversas propiciam o desvendar das particularidades, dos segredos, das singularidades do Mindelo e dos mindelenses. Deliciando-se com a efabulação da “sua ilha, não se importando minimamente de misturar a história com a fantasia”, Pepe constrói narrativas que se constituem como fontes preciosas para o livro que o narrador diz estar a preparar sobre a sua terra, e que os leitores puderam descobrir ao longo da sua leitura. Retratam-nos uma cidade vista como “um lugar de tantas solicitações e oportunidades e tentações e promiscuidade”, em que liberdade pessoal e libertinagem coabitam. As paixões são vividas frequentemente numa relação triangular que não parece ser causa nem de grandes incómodos nem de tristes dramas, mas antes motivo de disputas e desafios.
De memórias, encontros e emoções, assim se constrói Do Monte Cara Vê-se o Mundo, um romance que, recuperando o passado, questiona problemas de grande atualidade fazendo-se eco da História do Mindelo.