Sobre alguns escritores é impossível falar das suas obras sem falar das suas vidas. Ambas se confundem de tal forma que, por vezes, parecem uma e a mesma coisa. Também ajuda a mitologia que se gera à volta dessa torrente única, o que faz com que nunca se perceba muito bem se essa mistura se deve à vida que levaram ou aos livros que escreveram. É a velha história do ovo e da galinha, que quando aplicada à Literatura se transforma num entusiasmante jogo biográfico e interpretativo. Claro que são muitos os excessos de leitura que esta visão suscita, mas Charles Bukowski, sobre o qual agora falamos, facilita-nos a tarefa. Nesse sentido, a afirmação que surge no final deste seu primeiro romance, Correios, é muito esclarecedora: “De manhã, era manhã e eu ainda estava vivo. Talvez escreva um romance, pensei. E foi o que fiz”. De resto, interpretando o espírito do livro, a editora decidiu incluir ao da frase uma fotografia do próprio escritor, tirada na época em que a obra foi publicada, em 1971. É a arte que imita a vida ou a vida que imita a arte?
Não vale a pena deslindar a parangona que desde a antiguidade vem alimentando acaloradas discussões. Até porque Charles Bukowski não nos dá motivos para o fazer. O ponto de partida é justamente a sua experiência enquanto funcionário dos Correios, trabalho que lhe “consumiu” 13 anos de vida. O autor de Mulheres ou A Sul de Nenhum Norte transfigura-se em Henry Chinaski, um homem que gasta sempre mais do que recebe, em parte por causa da factura da bebida. Às vezes, para compor as contas do mês, passa pelas corridas de cavalos, onde engana endinheirados e patos bravos com a sua astúcia.
A astúcia, de resto, é o que mais caracteriza Bukowski. A rapidez da sua escrita não oculta um olhar extremamente atento. Em poucas frases compõe-se uma cena, descreve-se uma personagem, comprova-se um modo de vida que tinha tanto de libertino quanto de libertário. Não há regras para esta existência atropelada pelo quotidiano e à medida que o romance avança torna-se evidente o fosso que separa uma sociedade americana, burocrática e formalista, e o espírito insubmisso deste trabalhador desordeiro. As doses duplas de whisky, os cigarros que se fumam nas situações mais impróprias, as conquistas amorosas com as suas cantigas do bandido, o tudo ou nada do jogo contrastam com um sistema empresarial em que o código postal não permite divergências, tal como os regulamentos, que são reproduzidos no início do livro e ao longo da troca de correspondência entre o departamento de recursos humanos e Chinaski. O autor/personagem, que nasceu em 1920 e morreu em 1994, foi despedido. Não espanta. E saúda-se.
Se todos os mitos literários têm um livro fundador, Correios assume esse papel para Charles Bukowski. É um bilhete-postal em forma de auto-retrato do escritor enquanto funcionário público.