Os bons espíritos reencontram-se, já se sabe, por isso não espanta que seja Enrique Vila-Matas a assinar o prefácio de Nova Iorque, de Breendan Behan, o novo volume da preciosa colecção de Literatura de Viagens da Tinta-da-china, dirigida por Carlos Vaz Marques. É que entre o escritor espanhol e o irlandês, que viveu a maior parte da vida na América, há a mesma sedução pelas histórias que as cidades escondem. Pelos pequenos mistérios que só a vivência plena, sem reservas, consegue desvendar. Hotéis míticos, bares sempre abertos, pequenas salas de espectáculos, segredos bem escondidos, coreografias urbanas e um infindável corpo humano que resumem o espírito de cada lugar. Os dois são dotados desse apurado sentido arqueológico que usam não para desbravar a quietude do passado, mas para surpreender a efervescência do presente. Vê-los juntos no mesmo volume é conciliar o melhor de dois mundos. A força de quem escreve. E a argúcia de quem lê.
O interesse de Vila-Matas em Brendan Behan é fácil de explicar. O autor das peças de teatro The Hostage ou Richard’s Cork Leg é daquelas figuras míticas de que é feita a marginalidade literária. Nasceu em 1923 e morreu em 1964, mas nenhuma biografia é capaz de abarcar a multiplicidade das suas aventuras, algumas passadas no Hotel Chelsea, outro lugar de peregrinação literária onde sempre encontrou refúgio. Bebia excessivamente, tal como vivia sem travões, a acelerar pelas ruas e pelos pontos de encontro. Pertencia àquele contingente de irlandeses que gostava de Dublin à distância de quatro mil quilómetros, do outro lado do Atlântico. Emigrou, não sem antes ter pertencido na juventude ao IRA, o que acabou por resultar em prisão, como lembra no romance autobiográfico Borstal Boy. No seu jeito bem mordaz, definia-se como “um alcoólico com problemas de escrita”. Sempre tentou ver o mundo ao contrário. Descobrir-lhe um ponto de vista particular.
Nova Iorque, segundo apurou Vila-Matas, foi escrito num dos corredores do Hotel Chelsea, já no final da vida. Aliás, corrige no prefácio o autor de Diário Volúvel, “o livro foi ditado, não foi escrito, porque Behan já andava por esses dias espectacularmente bêbado”. Talvez esta informação explique o carácter errático da obra, que deambula por temas, num encadeado de histórias sem rumo. O tom é coloquial, à medida que inventaria espaços, episódio, pessoas e escritores, numa galeria de memórias que revelam a essência da cidade que nunca dorme. “Não tenho qualquer receio em afirmar que Nova Iorque é a mais magnânima cidade à face deste mundo de Deus”, diz Brendan Behan. E com este livro, de inebriante leitura, contribuiu para o seu mítico estatuto. O melhor mesmo será começar a espalhar a notícia. Porque, como diz Frank Sinatra, “I’m leaving today. I want to be a part of it…”