“Se sair cara, é a mulher da minha vida e seremos felizes para sempre; se sair coroa, nunca mais nos falamos”. Quantas decisões poderão ser feitas atirando uma moeda ao ar? As pessoas que confiam no destino, confiam até que ponto? No futebol, está instituído. O piparote do árbitro dita quem escolhe o campo. Houve mesmo um mundial de futebol decidido por moeda ao ar. E que moeda? Os futebolistas ganham milhões, mas é uma moeda de cinquenta cêntimos que dita quem ataca a favor do vento ou contra o sol. E é preciso ter cuidado porque há moedas que têm duas caras e nada de coroas. Através de uma moeda podem ganhar-se muitas notas.
“Se sair cara vamos para Sul, se sair coroa vamos para Norte”, tenho um amigo que fez uma viagem assim. A cada cruzamento escolhia o destino por moeda ao ar. Nunca mais voltou a casa. Hoje pergunto-me o que será feito dele. Andará em círculos, sem saber escolher a saída da rotunda? Terá entrado pela autoestrada em contramão? Cara ou coroa? “Se sair cara, casarei contigo; se sair coroa, seremos felizes para sempre”.
O caraoucoroismo é a religião secreta de milhares de pessoas. É transversal a toda a sociedade. Torna-se, de facto, prático, pragmático, em vez de perder tempo com os dilemas, dá-se à ventura da gravidade o poder de decisão. Se resultar mal, a culpa não é nossa, é apenas tempo de mudar de moeda. Pergunto-me quantas decisões políticas com consequências práticas na vida dos cidadãos seguiram este método (“Se sair cara, convoco eleições antecipadas; se sair coroa, mantém-se o mesmo governo”), E quantas más decisões seriam possivelmente evitadas através desta prática despretensiosa.
Steve Hartman, um dos mais talentosos repórteres americanos, usa um sucedâneo do caraoucoroismo como método de trabalho. A primeira coisa que faz é atirar uma seta às cegas para o mapa dos Estados Unidos. Escolhe assim o local da reportagem. Depois, vai à lista telefónica e, aleatoriamente, aponta um nome. Esse anónimo é o objeto de Everybody has a Story. O resultado é extraordinário.
O caraoucoroismo obriga a uma visão dicotómica da vida, de brancos e escuros, sem qualquer grau de cinzento. Sim ou não, sem espaço para o talvez. A probabilidade da moeda assentar na vertical é tão reduzida que nem sequer se coloca. O caraoucoroismo implica uma fé no destino, que desculpabiliza o próprio perante os seus atos. “Se sair cara, beijo-te; se sair coroa, mato-te”. Uma das dificuldades, possíveis manipulações do destino, é a correspondência entre cara e coroa nos dilemas, o que pode ser decidido da mesma forma: “Se sair cara, é coroa; se sair coroa, é cara”.
A aplicação do caraoucoroismo não implica o cumprimento do destino a que a moeda nos submete, há fatores alheios à própria moeda, porque o destino não se constrói sozinho, mas na relação com os outros. Até porque do outro lado pode estar um praticante da mesma modalidade: “saiu-lhe cara, por isso ele convidou-a a subir para o quarto; saiu-lhe coroa, por isso ela deu-lhe um estalo na cara”.