Os livros que preenchem as paredes do Salão Nobre da Academia de Ciências de Lisboa (ACL) impressionam, e em todas as salas desta instituição fundada em 1779 encontramos saber acumulado e testemunho de homens e mulheres que dedicaram as suas vidas ao conhecimento.
A ACL será sempre guardiã desses ecos do passado, mas é hoje um espaço cada vez mais aberto ao mundo. Com recurso às novas tecnologias e ferramentas, as coleções da Academia estão agora disponibilizadas on-line, os projetos são organizados em rede e a atenção à atualidade e aos desafios da contemporaneidade marcam a agenda de conferências e seminários.
A reconversão do papel da instituição esteve, nos últimos anos, a cargo de José Luís Cardoso, 68 anos, que assumiu a presidência da ACL em 2022 e termina o seu mandado no final de 2024.
O especialista em História da Economia, prof. catedrático da Univ. de Lisboa e investigador coordenador do Instituto de Ciências Sociais tem procurado intensificar a ACL enquanto polo de divulgação do conhecimento, ao mesmo tempo que contribui para a projeção do Português como Língua de utilização universal.
Símbolo dessa vontade é a abordagem às comemorações do V Centenário de Luís de Camões: a exposição, que se inaugura hoje, 27, e o colóquio a organizar em 2025, sublinham o poeta como autor de uma obra global que convoca as mais diversas disciplinas científicas.
Qual a filosofia das comemorações do V Centenário do nascimento do Camões na Academia?
A ideia geral é celebrar Camões e, com ele, a Língua Portuguesa e a sua difusão no mundo. Procuramos também aprofundar o nosso conhecimento da obra deste poeta maior. Nesse sentido, vamos promover três iniciativas. Uma exposição que se inaugura hoje, 27, e que tem como tema “Camões Universal”.
Em que consiste a exposição?
O objetivo é mostrar justamente a difusão da obra do poeta, sobretudo de Os Lusíadas, nas diversas línguas em que foi traduzido e dessa maneira sublinhar como a língua de Camões é global. Publicado pela primeira vez em 1572, o poema épico teve um enorme impacto na cultura não apenas europeia, mas universal.
A nossa exposição é centrada nas traduções, com duas obras iniciais: a primeira edição de Os Lusíadas, de 1572, da qual a ACL tem um belíssimo exemplar, e a primeira edição do livro de Garcia D’Horta, Colóquios dos Simples e Drogas da Índia, de 1563, que tem o primeiro poema publicado de Camões, numa dedicatória ao vice-rei da Índia e que é também, de alguma forma, um tributo de homenagem de Luís de Camões ao seu amigo Garcia da Orta.
A projeção internacional de Camões começou logo na sua época?
A nossa exposição procura reforçar justamente isso. A curadoria, da responsabilidade da académica Isabel Almeida, grande conhecedora da obra de Camões e da literatura do Renascimento, destaca o roteiro das traduções, a começar pelo castelhano, depois em italiano e inglês, a seguir em francês e novamente em inglês, mais tarde em alemão e em muitas línguas orientais. São 24 idiomas no total e a ACL tem uma amostra muito significativa de primeiras edições destas traduções.
Uma coleção assinalável…
Sim. Na verdade, a coleção camoniana da ACL foi enriquecida há dois anos com a doação da coleção particular da família de Manuel Queiroz Pereira, que, de alguma forma, valorizamos nesta exposição. Além deste roteiro de traduções, teremos também um mapa, uma representação gráfica dos locais onde a obra foi traduzida e divulgada, porque 24 línguas cobre uma enorme área geográfica.
O que, da atividade da própria ACL, constará das comemorações?
Já está disponível em acesso livre a digitalização da memória camoniana na ACL, ou seja, o conjunto de monografias, comunicações e conferências realizadas na ACL desde a sua fundação, em 1779, à atualidade. Vamos organizar ainda um ciclo de conferências em torno da temática camoniana, que começa, a 12 de dezembro, com Isabel Rio Novo e Carlos Maria Bobone, autores de duas excelentes biografias publicados este ano. Outras sessões irão acompanhar a exposição, patente até ao final de fevereiro.
Numa Academia plural como é a nossa, homenageamos Camões como figura máxima da literatura portuguesa e universal, mas também como autor de uma obra que suscita a reflexão nos mais diversos domínios científicos
Referiu três iniciativas nestas comemorações. Qual a terceira?
Um colóquio em maio, com organização dos académicos Carlos Ascenso André e Isabel Almeida, dedicado ao tema “Camões e os Saberes”. A ideia é ver como a obra de Camões constituiu pretexto para estudos em diversos domínios científicos. Camões interessa sobretudo no âmbito dos estudos literários, mas também aos matemáticos, astrónomos, físicos, naturalistas, botânicos, economistas, juristas ou politólogos. Numa Academia plural, como é a nossa, a nossa forma de homenagear Camões é mostrar como ele é uma figura máxima da cultura, da literatura, da poesia épica portuguesa e universal, mas também autor de uma obra que suscita a reflexão e o entendimento de problemas que são discutidos nos mais diversos domínios científicos.
Procuramos, muitas vezes, definir um clássico. Será essa multiplicidade de olhares que uma obra convoca uma boa definição?
Sem dúvida. Um clássico é uma obra de âmbito universal. E esta universalidade não tem apenas a ver com a difusão da sua obra a uma escala global, mas também com a maneira como consegue suscitar o interesse intelectual de uma gama muito diversificada de disciplinas académicas e científicas. Camões faz isso de uma forma genial. Desde o início, a ACL teve nos seus membros os maiores camonistas e estas iniciativas são também uma forma de os homenagear. Para nós, isso é a melhor prova de que uma instituição pode, através dos seus membros, contribuir de facto para o fortalecimento da cultura portuguesa e da sua difusão a um público mais alargado.
Para lá dos constrangimentos que as comemorações têm tido, um dos eixos principais é a disponibilização on-line de estudos que foram feitos, ao correr dos séculos, sobre Camões. A ACL acompanha essa tendência?
Totalmente. Aliás, essa aposta vem, de algum modo, ao encontro de uma preocupação nossa dos últimos anos: partilhar o conhecimento que se produz e, sobretudo, envolver de uma forma mais direta e intensa o público em geral, o que acreditamos que tem acontecido. A ACL não é uma instituição de produção científica, mas os seus membros desenvolvem, nas suas universidades, uma intensa atividade de investigação. No entanto, a ACL é um lugar privilegiado para a difusão e partilha desse conhecimento acumulado. O que temos feito nos últimos anos é justamente mostrar a riqueza do património que a Academia conserva na sua Biblioteca, Arquivo Histórico e Museu. Património esse que pode e deve ser mais divulgado junto de um público que não frequenta diariamente a instituição. Uma dessas formas é torná-lo facilmente acessível.
Em concreto, o que tem sido feito?
A nossa coleção de manuscritos está integralmente digitalizada e disponível em acesso livre no site da ACL. O mesmo acontece com o Arquivo Histórico, com as pastas dos académicos também disponibilizadas. No site temos ainda um dicionário histórico da ACL, em construção, para que os interessados na vida institucional possam ter informações e conhecer os seus vultos mais salientes.
É toda uma atividade de valorização das nossas coleções, que passa igualmente pelo Museu da História da Ciência, com todos os seus instrumentos científicos, e o Museu de Antropologia, com uma fantástica coleção de objetos de culturas indígenas da Amazónia. Estamos a fazer um trabalho semelhante para os livros do século XV, de que temos um vasto espólio, neste momento a ser restaurado. A tudo isto está subjacente uma vontade de abertura e de partilha do saber acumulado.
Tem havido muito trabalho invisível, de bastidores…
É verdade, realizado por uma equipa pequena que tem sido reforçada com estudantes de mestrado e de doutoramento, a quem atribuímos bolsas. Ao mesmo tempo, enriquecem a sua formação e trabalham nas coleções da ACL. Isto exige naturalmente uma captação de fundos mecenáticos e temos tido apoios extraordinários de diversos mecenas que, de uma forma regular, têm contribuído para que estas ações sejam possíveis. É um trabalho invisível que, no entanto, se torna visível a partir do momento em que é usado com mais eficácia.
Não só o arquivo está hoje muito mais organizado, como na sua arrumação descobriram-se documentos que se julgavam perdidos. Um deles foi um conjunto de desenhos que pertenciam ao antigo convento onde a ACL está instalada e que provam que houve aqui uma aula de desenho público, na qual se copiavam os grandes mestres do Renascimento italiano. Quando uma instituição mexe no seu arquivo e legado descobre sempre qualquer coisa.
Essa rearrumação e integração de bolseiro tem dado origem a novos estudos?
Sim, tem contribuído para uma renovação do conhecimento, que é feito na ACL, mas sobretudo pelas comunidades académicas e científicas que recorrem aos nossos arquivos. Temos tido ecos muito positivos e favoráveis sobre os efeitos desta nova atitude em relação às coleções da ACL.
A valorização do património e a sua disponibilização on-line era uma ideias-chave do seu mandato como Presidente da ACL. Há mais algum projeto em curso?
Temos dinamizado as nossas sessões académicas semanais e as organizadas pelo Instituto de Altos Estudos, com ciclos de conferências sobre temas atuais, em que as ciências são chamadas a uma intervenção muito direta. Estamos a falar, por exemplo, das alterações climáticas, inteligência artificial, transição energética, migrações ou o populismo, quer no âmbito mais das ciências, quer no campo das Humanidades. Recentemente organizámos uma sessão sobre a pobreza, no Dia Internacional da Erradicação da Pobreza, e procuramos em datas marcantes falar sobre temas que interessam não apenas aos académicos mas à sociedade no seu conjunto.
Fazer esta difusão e partilha de conhecimento é uma oportunidade para chamar a atenção para os problemas fundamentais do mundo contemporâneo e para os quais a ciência tem um papel importante em termos de aconselhamento independente. Na linha do que tem vindo a ser feito nos últimos anos, temos reforçado o papel da Academia enquanto instituição independente que pode contribuir para a definição e o acompanhamento de políticas públicas nas áreas centrais da sociedade portuguesa.
Em que sentido?
Esta não é apenas uma missão, mas uma obrigação que os académicos têm. Muitos já o fazem nas suas instituições universitárias, estamos a procurar que o façam também aqui, através de iniciativas que a Academia promove.
Temos produzido alguns relatórios, um que estará em breve disponível sobre os problemas da energia e da transição energética. Organizamos recentemente um ciclo de conferências sobre riscos sísmicos, uma preocupação que está na ordem do dia, com especialistas de diversas áreas.
A Academia procura acompanhar o que de mais importante tem sido suscitado no plano científico. Mais um exemplo: promovemos este ano duas sessões públicas sobre os vencedores dos prémios Nobel das ciências, da literatura, da economia e da paz. No fundo, é pôr a ACL no centro da difusão do conhecimento, sem esquecer o domínio da língua.
O que tem sido desenvolvido campo da Língua Portuguesa?
Tivemos este mês uma reunião com a Academia Brasileira de Letras para uma reflexão sobre os trabalhos lexicográficos em curso, sendo que a ACL tem um dicionário e um vocabulário online gratuitos. Temos mantido contactos com os diversos países e em dezembro realiza-se, em Cabo Verde, um encontro das academias de Língua Portuguesa justamente para discutir temas de interesse comum.
O que dentro dessa articulação em torno da Língua Portuguesa lhe parece prioritário?
Um dos temas prioritário é sem dúvida o uso de ferramentas de inteligência artificial na criação de corpus e de thesaurus que permitam, através de grandes massas de informação, obter um conhecimento mais aprofundado dos usos destas novas técnicas para efeitos práticos do ensino da língua ou de tradução. Há também matérias do Acordo Ortográfico que têm de ser vistas frontalmente.
A língua não se resume à ortografia e sabemos que nem sempre existe um consenso sobre estas matérias, mas acredito que as academias podem ter um papel importante no reconhecimento de que há temas que podem ser resolvidos através de um bom entendimento. Isto no sentido de projetar o Português como uma língua de utilização universal.
Não deve haver receio de falar do Acordo Ortográfico, reconhecer que é um tema que por vezes divide opiniões e perceber que a partir do que está em vigor é possível encontrar soluções para fazer do Português uma língua de utilização universal, sem entraves técnicos
Às vezes há receio de voltar a tocar no Acordo Ortográfico por ser um tema polémico. É necessário olhar para ele e ver o que pode ser melhorado?
Não deve haver receio de falar do Acordo Ortográfico, reconhecer que é um tema que por vezes divide opiniões e perceber que a partir do que está em vigor é possível encontrar soluções mais adequadas ao grande objetivo de fazer do português, como dizia, uma língua de utilização universal, sem entraves técnicos.
O edifício da ACL também vai ter algumas alterações no seu edifício histórico. Vão em que sentido?
Teremos uma nova entrada e relação com o exterior. No rés-do-chão da ACL havia um depósito de publicações que punha em risco, do ponto de vista da segurança, todo o edifício. Com a colaboração da Ordem dos Arquitetos, iniciámos um processo de abertura de um concurso para projeto de renovação desse armazém. Está tudo aprovado e aguardamos apenas o lançamento da empreitada de obra que vai começar no próximo ano
Já temos financiamento e esperamos que dentro de ano e meio possamos ter uma entrada direta para a rua com uma livraria, uma cafetaria, duas salas polivalentes para organização de seminários e conferências. Haverá também uma nova entrada para o Museu da ACL e novo percurso museológico.
Do ponto de vista simbólico, esta transformação será uma demonstração de como a ACL quer estar aberta ao país, à cidade, à rua – para mostrar as suas coleções e o reforçar o seu papel na difusão da cultura e da ciência em Portugal.
Sempre a cuidar do passado e olhar para o futuro?
Exatamente. É a reinvenção do próprio sentido com que a ACL foi criada em 1779. O nosso lema é: se não é útil o que fazemos, a glória é vã. Os fundadores já tinham esta ideia: as Ciências e as Letras devem ser úteis, não num sentido utilitário, mas no de contribuir para o conhecimento do país que somos, da realidade em que vivemos, com um olhar no futuro, tentando perceber como poderemos, a partir do conhecimento que temos, melhorar as condições de vida para o que se avizinha. Esta convicção pode ter algo de utópico, mas é uma missão que a ACL, com os seus altos e baixos e diferentes fases ao longo da sua história, nunca deixou de ter.