Imaginemos as antigas Rotas da Seda. Partindo de Changan (Xian), na China, as caravanas desbravavam caminhos distintos pelo deserto de Taklamakan, convergindo em Dunhuang, um famoso centro budista a partir do seculo IV d.C. A rota sul, incluindo o oásis de Khotan, famoso pelos seus jades, encontrava-se com a rota norte em Kashgar, o berço da cultura Uigur. Viajante intrépidos superavam desertos, montanhas e rios para alcançar empórios na Ásia Central, como Samarcanda e Bucara. Posteriormente, as caravanas dirigiam-se para sul, mapeando uma trajetória até Merv, atravessando terrenos desérticos em direção a Nishapur. Rumando ao sul do Mar Cáspio, os destinos variavam, abrangendo Damasco, o Mediterrâneo, a Arábia, o Egito e Constantinopla.
Esta visão romântica da “Rota da Seda” é apelativa, mas enganadora. Contrariamente à crença popular, não existem registos históricos que mencionem explicitamente uma “Rota da Seda”, e atualmente são poucos os arqueólogos e historiadores que defendem o conceito na sua forma idealizada. Na verdade, a terminologia foi criada por académicos-aventureiros nos finais do século XIX e inícios do século XX, sendo Ferdinand von Richthofen pioneiro ao utilizá-la em 1877, num mapa publicado no mesmo ano. No contexto do século XIX, a busca por colónias reacendeu o interesse pela Ásia Central, China e Índia, marcando o apogeu do Orientalismo. A Grã-Bretanha e a Rússia competiram pela influência na região, um embate conhecido como o Grande Jogo, posteriormente envolvendo também o Japão. A fragilidade da Ásia Central foi explorada pela Rússia, enquanto a Grã-Bretanha assegurava sua influência na Índia. Nesse cenário, Richthofen, especialista em geologia, concebeu a ideia de uma rota comercial conectando a Ásia à Europa, intrinsecamente ligada aos planos alemães de uma linha férrea entre a China e a Europa (hoje realizada, de outra forma, através da iniciativa One Belt One Road).
Para além de mascarar agendas políticas, o conceito da “Rota da Seda” oculta a enorme diversidade de experiências humanas que moldaram os processos de globalização no mundo pré-moderno. Em 2024, o Museu do Oriente quer destacar a importância incontornável da Ásia Central, imaginada como uma paisagem desértica e impenetrável, na formação da nossa história global. Desafiaremos perceções convencionais da “Rota da Seda” num curso multidisciplinar que explora a conectividade Euroasiática desde a Idade do Bronze às conquistas Mongóis, realçando o papel crucial desta região nas interações culturais entre o que é hoje território da China, Índia, Ásia Ocidental e Europa.J
* Mariana Castro, arqueóloga, é a formadora do curso para Além da Rota da Seda, no Museu do Oriente.