António Ferreira nasceu em Lisboa em 1528. Com 15 anos de idade, foi estudar para a Universidade de Coimbra, numa época em que a cidade do Mondego fervilhava de espírito humanístico.
A 14 de Julho de 1555 recebeu o grau de Doutor em Cânones. No ano seguinte, a contra gosto, deixa Coimbra, cidade onde queria trabalhar e viver, para ocupar o cargo de Desembargador da Casa do Cível na capital do Reino. Em 1569, a peste que assolou Lisboa bateu-lhe à porta. Era o dia 30 de Outubro. Tinha 41 anos. Partiu cedo. Lisboa foi o seu berço, e o seu túmulo.
Enquanto frequentou os estudos escreveu a sua obra dramática: a Comedia do Fanchono, ou Bristo; a Comedia do Cioso e a tragédia Castro, a “obra-prima do teatro clássico português”.
A sua obra dramática, pois só desta se falará aqui, está relacionada intimamente com a cidade do Mondego e com a vida académica e as suas tradições. Dom João III, por Alvará de 28 de Setembro de 1548, havia determinado a “obrigação” de em cada ano, se promover a representação pelos estudantes e professores, de uma comédia original, tendo como pressuposto a tradição escolar de serem apresentadas as comédias de Plauto e Terêncio.
Se o juízo é unânime quanto à sua imortal tragédia, representada amiúde em solo nacional, quanto às suas comédias os pareceres diferem, sendo-lhes negado um valor estético e dramático digno de nota.
Em 2008, promovi um Ciclo de leituras encenadas, apresentadas na Livraria Bulhosa em Lisboa, e produzidas pelo Teatro Maizum. Entre as obras lidas, uma delas foi a Comedia do Cioso. Nesse evento, em que se reconheceu o valor teatral desta obra, J. A. Cardoso Bernardes referiu como as comédias de A. Ferreira são modernas, lamentando o pouco interesse da crítica e a pouca atenção dos palcos nacionais para a representação das mesmas.
Falemos do Cioso. A acção passa-se na Praça de S. Marcos, em Veneza. A intriga está focada no casal Júlio e Lívia. O tema central da peça é o ciúme e a coerção doméstica exercida pelo consorte masculino.
Micer Julio, mercador e banqueiro, casou-se com a bela Lívia, filha de César e de Pórcia. Um casamento de conveniência por imposição do pai e a contra-gosto da filha. Júlio é muito ciumento e enclausura a jovem esposa dentro da própria casa que mais parece “uma fortaleza”, impondo-lhe uma existência miserável e infeliz. Bromia, a ama que criou Lívia e lhe tem muita afeição, desespera perante tanto rigor e crueldade. Mas, enquanto Júlio encerra a esposa em casa, sob a mais severa vigilância (não vê, não sai, nem pode ser vista), reserva para si plena liberdade para correr em procura dos prazeres de amor de Faustina, uma cortesã que o recebe por interesse.
No início da peça, Lívia queixa-se a Bromia da sua triste sorte, por não ter casado com Bernardo, moço português, que a amava. Obedecendo ao pai em vez de seguir o seu coração, tem agora de aceitar o seu negro destino, dizendo para a ama: “Vem-me fechar Bromia. Oh! Morte, que vida é esta”.
O velho César, pai de Lívia, lamenta-se do cativeiro em que se encontra a filha. Promete libertá-la. Júlio, numa cena muito teatral, esconde a identidade própria. Bernardo, o antigo pretendente platónico de Lívia, que não sabia do casamento desta, confidencia ao seu amigo Octávio, espírito “sensual” e amante de Faustina, a cortesão de Júlio, o seu desgosto, e recebe conselhos práticos deste.
No III acto, a intriga complica-se. Lívia pede a Octávio que ocupe Júlio com Faustina, sua amante, para poder receber Bernardo, num encontro casto, em sua casa. Octávio, para ajudar o amigo, aceita que Faustina, a sua amante, dê “uma noite a Júlio”. Faustina lamenta-se a Clareta de estar a ser usada por Octávio, o homem que ama.
Júlio apesar dos receios e ciúmes por Lívia vai encontrar-se com Faustina, fazendo-se passar por um amigo dele próprio. Dá ordens a Bromia para não abrir a porta de casa em nenhuma situação, nem sequer a alguém parecido com ele. Com o caminho livre, Bernardo é recebido por Lívia, mas a situação precipita-se, pois Júlio regressa a casa antes de tempo, dado ter sido surpreendido em flagrante com Faustina, por Octávio. Quer entrar, mas Bromia, seguindo à risca as ordens deixadas, não lhe abre a porta, até porque Bernardo encontra-se com Lívia dentro de casa.
Júlio, após o tremendo escândalo, com que acordou a vizinhança, reconhece o seu erro e promete libertar Lívia e tornar-se noutro homem. Envergonhado pede desculpas a Bernardo, e parece ter aprendido a lição, pois acabou sendo enganado por Lívia e Faustina, a cortesã que tanto desejava. Finalmente, descobre-se que Octávio é irmão de Bernardo, e César, o pai de Lívia, exulta por a filha estar liberta do jugo do marido ciumento, concluindo que se Júlio era exagerado nos ciúmes é-o agora na submissão.
No Cioso, “Júlio, marido ciumento e contudo perdido pela cortesã Faustina, acaba por ser duplamente enganado, porque se enleia nas manhas das suas próprias perfídias e cautelas”.
Lê-se na História da Literatura Portuguesa de Óscar Lopes e António José Saraiva, que as comédias de A. Ferreira, como as de Sá de Miranda “não oferecem qualquer interesse para o leitor moderno, e ficam muito abaixo de obras similares italianas” e, mal-grado algum mérito reconhecido, são sempre mais os defeitos apontados que as virtudes assinaladas.
Um olhar literário sobre a obra dramática deve contar com a perspectiva teatral, com a experiência da cena. Quem se lembraria de sacrificar o Cimbelino de Shakespeare porque a acção é complexa, inverosímil, desenvolvida em espaços distantes, com discurso retórico, etc…
Dizia Adrien Roig, em 1970, que o melhor era ler as obras para falar com conhecimento de causa. Acrescentamos que para conhecer uma obra dramática, devemos representá-la.
O Cioso e as personagens de António Ferreira merecem também hoje um palco. O levar à cena o “penoso problema da condição da mulher casada” é um tema do seu e do nosso tempo. A Comedia do Cioso acaba bem, porque o género literário assim o determina, mas sabemos de todas as violências cometidas em nome do amor/posse que fere e mata. Lívia é, em toda a acepção, uma mártir anunciada. Bem o desenvolveria, num outro contexto de final trágico, António Ferreira na sua Inês de Castro.
António Ferreira jazia na Igreja do Convento do Carmo. Os ossos desapareceram. A laje, também. O seu teatro aguarda!
Lisboa, 18 de Novembro de 2014
Silvina Pereira