A cultura do vinho é iniciática e bebê-lo é uso antigo da humanidade. Alfaias, ânforas, sarcófagos, baixos-relevos, registam e testemunham a sua importância. Na antiguidade Dionisos/Baco é o deus das festas rústicas, e preside à sátira e à comédia que muito se tem aproveitado dos “malefícios” e dos “benefícios” do vinho.
Em Portugal, país das uvas e mosaico de sabores, também o vinho é fonte de inspiração do teatro português. Alguns textos dramáticos do século XVI, na sua vertente cómica, têm como protagonista esse elixir vitae, sumo de uva madura espremido e fermentado, néctar da terra e ambrósia dos mortais. O frade borrachão, o velho concupiscente, a alcoviteira, o jovem afogado em mágoas, toda esta galeria teatral se alimenta do vinho e do seu inebriamento.
No Pranto da Maria Parda, ou Maria Mulata, segundo Raphael Bluteau, a protagonista é grande apreciadora de vinho: “Oh, vinho mano, meu vinho / que má hora te gostamos”. O vinho está caro e inacessível. Sem dinheiro para o comprar, Maria Parda tenta desesperadamente obtê-lo fiado dos taberneiros, mas as “tavernas da Ribeira”, da Alfama, e da Mouraria estão fechadas ao seu clamor e não respondem à sua extrema necessidade de conseguir “um jantar de vinho”. Sequiosa e incapaz de o conseguir, Maria Parda morre de sede. Despede-se da vida e do vinho e das “vinhas de Caparica / onde meu desejo fica” não sem, antes, fazer disposições para o seu funeral, num alucinado discurso testamentário.
A edição do Pranto é de 1522, ano de fome severa na cidade de Lisboa. Aqui se vêm as difíceis condições de vida dos negros e mestiços no Portugal do século XVI. As classes populares viviam à beira da indigência, entre a miséria, a fome e o alcoolismo. E, embora a cidade de Lisboa, “cais do mundo”, se debruce sobre o luminoso estuário do Tejo, como escreveu Margarida Vieira Mendes “em toda esta paródia de tragédia: a minhoca que puseram a secar no começo deste auto irá, no final, para as estrelas altas e longínquas – da terra para o céu – mas com grande sede”.
Um segundo exemplo encontra-se na obra do dramaturgo juiz Anrique da Mota. A relação entre o vinho e o clero é um dos temas tratados pelo “juíz dos orfãos em Óbidos” em diversas trovas e no seu Pranto do Clérigo onde um religioso chora inconsolável por uma pipa de vinho entornada. O clérigo convence os amigos a carpir com ele o vinho “falecido”, como se se tratasse da morte de um ente querido. A lamentação tem graça e engenho jocoso e satírico. A situação é muito teatral, pois o clérigo chora como um órfão pelo seu preciso vinho de “Caparica”, maldizendo o mundo e a criada negra com quem vive amancebado e revoltando-se, finalmente, contra a pipa que de maneira incauta deixou derramar a “rosa” da sua vida.
Para completarmos este magnífico mosaico de textos teatrais portugueses cuja acção se elabora a partir do vinho, lembramos a Comedia Ulysippo de Jorge Ferreira de Vasconcelos. Na 6ª cena, do III acto, encontra-se uma cena que justamente celebra o Amor, a Poesia e o Vinho. Hypolito, filho do cidadão Ulysippo, é jogador e ama a jovem cortesã Florença. A mãe desta não está pelos ajustes, pois tem planos diferentes para a filha, ou seja, quer que esta funcione como mercadoria cara junto dos homens ricos que a pretendem. Nesse sentido, Macarena organiza uma festa na sua casa. Crisófilo, Caixeiro dos Medices, um dos pretendentes, paga o festim dessa noite, com vista a ganhar os favores de bela Florença. A festa é animada por Parasito, personagem antiga, que trova, tange a sua guitarra e bebe. A um dado momento, como a comida não aparece, começa a dissertar sobre o vinho e o amor. Lambareiro vai provando os diferentes néctares, porque vinho é o que não falta na ceia paga pelo caixeiro. Sobremaneira aquecido pelo “sangue da terra”, exulta: “Ó grande senhor Baco! Ó melhor licor dos licores! Este cria o corpo, dá saúde, sustenta e conforta mais que todo outro manjar; amigo da natureza humana, alimpa o sangue danado, abre a boca das veias e, entrando per elas, desfaz o fumo que gera tristeza e dor”. Crisófilo tentando dar-lhe réplica, interpela-o, dizendo-lhe que sabe mais sobre o vinho e as suas virtudes que a famosa madre Celestina. Parasito, justifica a sua preferência pelo vinho, dizendo “Eu, senhor, sou muito odorado de secura e a água enxaugua-me o estâmago! E mais, dizem-me que gera juncos no bucho que picam o coração e matam! E por isso, sou muito inclinado a este licor de Caparica. E, como homem é obrigado a entender das cousas que trata, quis assi saber-lhe os intrínsecos!”.
Vasconcelos, fala-nos da embriaguez, desse estado divino de “permanecer no fogo sem se queimar”, propiciador de convívio e de palestrar espirituoso. O entusiástico hino ao vinho é poesis e exaltação da vida e da estrada larga do Amor.
O Pranto da Maria Parda parece ter contribuído para o gosto de dizer e fazer teatro. Veja-se como na Comedia Aulegrafia, também de Jorge Ferreira de Vasconcelos, este caracteriza o moço Cardoso como amante e actor de teatro evocando a mesma peça: “Sabe de cor as trovas de Maria Parda e entra por fegura no Marquês de Mântua”. Um testemunho indicativo de como a época respirava teatro.
Os dramaturgos portugueses estavam conectados com a sociedade do seu tempo, quer denunciando a carestia, o açambarcamento e a inflação do preço do vinho, como o faz Vicente, quer satirizando a degradante borracheira fradesca dramatizada por Mota, quer ainda condenando o que hoje se designa como o comércio de carne humana, como faz Vasconcelos.
Silvina Pereira
Lisboa, 16 de Setembro de 2014