O texto da Comédia d’El- Rei Seleuco, designação adoptada por Vanda Anastácio na edição de 2005 do Teatro Completo de Luís de Camões, tem duas partes bem diferenciadas. A primeira escrita em prosa, uma espécie de extenso “paso cómico”, retratando as circunstâncias concretas da representação de um espectáculo numa casa particular, sem nenhuma relação com a restante peça em verso, que trata de um tema com raízes longínquas, um episódio, localizado em fins do século IV a. C., na Síria, descrito por Plutarco, autor das Vidas Paralelas, mas munido de um novo sentido, dado por Camões, esse “Caballero e hijo del Renacimiento”.
Cada uma das partes poderia ter sido escrita antes ou depois, de tal forma é a sua independência, não deixando essa particularidade de provocar estranheza, conforme se pode ler em “El Rei Seleuco, 1645 (Reflexões sobre o “corpus” da obra de Camões”), também de Vanda Anastácio. Verdadeiramente são duas peças distintas, incluídas no mesmo programa de edição e de representação. Procurando antecedentes desta combinação, Eugenio Asensio refere que a “sacra rappresentazione” se serviu amiude de “frotolle”, ou passos cómicos independentes: “algunos de ellos pintaban el teatro por dentro, los preparativos y riñas de los actores antes de la función. Las apreturas de los espectadores, el cierre de las puertas, el temor de quedarse en la calle, dan materia al diálogo de dos amigos que va al frente de la Comedia de Sepúlveda.” É o que acontece na primeira parte do El-Rei Seleuco, um texto que é pródigo em informações sobre a representação cénica e práticas teatrais quinhentistas, tal como o Auto da Natural Invenção do Chiado e do anónimo Auto dos Sátiros, já aqui referidos.
A acção da comédia começa dentro de uma casa, aonde irá decorrer a representação de um auto num dia de festa. Assiste-se aos preparativos e ao desenrolar de comentários sobre o espectáculo, à colocação do público, uma assistência mal comportada, visto querer entrar embuçada e à força, uma situação que dá lugar a altercações entre o público e os organizadores da festa. Os problemas de última hora, como sejam, a falta de alguns adereços e a sua improvisação, a colaboração forçada do dono da casa e a interacção com alguns escudeiros embuçados, parecem ter como objectivo criar o clima de adesão e de predisposição ao riso, e ao prazer de desfrutar uma situação cómica muitissimo teatral.
A um dado momento, a personagem do Mordomo pergunta pelas figuras/actores! O Moço informa sobre as dificuldades de alojamento do público, posto serem muitos, e se encontrarem muito apertados e em grande confusão. Com a entrada forçada de uns embuçadetes, inicia-se nova confusão e nova luta, pondo em perigo o desenrolar do próprio espectáculo, dado que, as figuras sofreram “?a pedrada na cabeça do anjo”, e que quanto aos figurinos “rasgaram ?a meia calça ao Ermitão”. A exasperação aumenta com a fala do Moço sobre a indignação do actor e o seu pedido de reparação “e agora diz o Anjo que não há-de entrar até lhe não darem ?a cabeça nova, nem o Ermitão até lhe não porem ?a estopada na calça”. Este “amuo” das personagens parece retratar, em certa medida, a resposta a um tipo de comportamente menos conveniente do público em relação aos actores. Por fim, até sapatos ficam perdidos, num salve-se quem puder, protagonizado por uma turbamulta animada. Fica a sensação que, não é nada fácil manter as coisas nos eixos, dentro da casa, onde se realiza a representação.
As últimas falas da personagem Representador, quando finge esquecer-se do texto, retrata um momento comummente conhecido e nada desejado por todos os que praticam a arte de Talma. O falso engano na representação dá lugar a um comentário bastante perspicaz da personagem Ambrósio, que nos mostra que este foi um engano proveitoso, permitindo ao Representador passar do verso para a prosa, num terreno de aparente improvisação que, mais não é que a afirmação in loco do engenho e da arte do seu ofício no desempenho da comédia.
À intenção crítica e paródica muito intensa, acrescente-se a eficácia muitissimo teatral conferida à comédia pela estrutura de “teatro no teatro”, de “representação dentro da representação”, antecipando-se assim a Shakespeare (Hamlet ou o Sonho duma Noite de Verão), Calderón (O Grande Teatro do Mundo), ou Pirandello.
A dramatização dos preparativos para a representação do auto, proporcionava seguramente aos espectadores que a ela assistiam, momentos de grande comicidade e deleite, assim como oferece ao teatrólogo de hoje uma fonte importante de informações concretas sobre as condições em que decorria o trabalho dos actores, uma descrição que se alarga às condições de produção envolvidas à época e às expectativas e cumplicidades do público presente. Este manancial de informações sobre a vida teatral ao tempo, diz-nos como em meados do século XVI “as representações particulares em casa de fidalgos e homens da Corte, que contratavam actores, a troco de alguns cruzados, para animar o serão”, cujo anfitrião, neste caso, foi Estácio da Fonseca, reposteiro de D. João III.
O tema do Rei Seleuco teve popularidade europeia. O episódio de Estratónica e de Antíoco aparece a cada passo nos livros renascentistas. Em Portugal João de Barros em o Espelho de Casados (1540) e Jorge Ferreira de Vasconcelos na Eufrosina (1555), glosaram o heroísmo do Rei Seleuco. A melancolia de Antíoco, “doente de amor” encontra-se na personagem de Zelotypo na Eufrosina e também em Grasydel de Abreu na Aulegrafia. Na literatura, Camões teve como fonte e sentido os Trionfi de Petrarca. A fonte dramática é a tragédia Hipólito de Séneca, conhecida em Portugal desde o século XV. Mas, enquanto em Séneca, acabam muito mal os amores da Rainha pelo enteado, na comédia/auto de Camões, Seleuco-rei, lusitanisado, oferece a mulher ao amado filho e herdeiro, doente de amor pela madrasta, num exemplo de estóica abnegação e de amor paternal. Camões desafia o “impossível haver”, dando futuro aos amores proibidos do jovem Antíoco pela sua madrasta Estratónica. Pelas suas qualidades intrínsecas, bem merecia estar presente nos palcos, o teatro de Camões.
Lisboa, 11 de Setembro de 2013
Silvina Pereira