O Auto da Sibila Cassandra, de Gil Vicente, cumpre em Dezembro próximo, cinco séculos de existência, dado que foi representado nas matinas do Natal de 1513, para D. Leonor, mecenas do dramaturgo, no Mosteiro de Enxobregas, em Lisboa.
Gil Vicente, estreou-se na corte, num dia (7) de Junho de 1502, após o nascimento do futuro D. João III. Sabe-se que a Rainha D. Leonor, já viúva, ao assistir à representação do Auto da Visitação, pediu a sua reposição para o Natal seguinte, contribuindo com esse gesto para o incitamento a uma actividade continuada. Trabalhou para a corte, ininterruptamente, todos os anos, durante três décadas, e só parou à data presumida da sua morte em 1536, com o expressivo título, a Floresta de Enganos. Trata-se de um teatro encomendado pela Corte, mantido pela Corte e, antes de tudo, destinado à Corte.
Muita tinta tem corrido sobre a “misteriosa” biografia do homem que fazia os “aytos a el-rei”. António Dias Miguel, num estudo de 1985, dá conta de documentação existente na Torre do Tombo que comprova a sua dupla condição: “Gil Vicente, mestre de retórica… das representações”, ao serviço de D. Manuel, que lhe proporcionou todo o apoio material para escrever e representar as suas peças, o que, segundo Dias Miguel, terá igualmente acontecido com D. João III. Sabemos então que teve uma carreira pródiga, pois foi autor, ensaiador, encenador, compositor de música para canções cantadas nos autos e até, em grande número de casos, autor das letras das mesmas canções.
Gil Vicente que, no parecer de André de Resende, se tivesse escrito em latim suplantaria Plauto, o romano, escreveu cerca de 50 autos, classificados pelo próprio, em comédia, farsa e moralidade. Desse extenso rol, parecem apenas ser de leitura obrigatória: Barca do Inferno, Auto da Índia e Inês Pereira, textos que acabam por configurar a imagem de marca “do maior dramaturgo português de todos os tempos”. Ora, para uma obra tão extensa e versátil e que, segundo Stephen Reckert “Hasta llegar a Lope de Vega y la comedia nueva, la escena peninsular no alcanza más alta cima que la obra de Gil Vicente”,outras obras há que merecem ser conhecidas e representadas.
Segundo Cardoso Bernardes, o facto de Gil Vicente ter escrito parte da sua obra em língua portuguesa (cerca de 2/3) e outra parte em castelhano (cerca de 1/3) “implica, desde logo, que os falantes de Português (mesmo aqueles que estudam o autor na Universidade) ignorem sistematicamente o terço que é escrito em castelhano; por sua vez, os espanhóis têm-se limitado a editar os autos em castelhano, esquecendo a fracção mais extensa da obra, apenas porque está escrita numa outra língua”.
O caso do Auto da Sibila Cassandra revela-se, portanto, bem ilustrativo a este respeito. A circunstância de a peça ter sido escrita em castelhano originou, salvo algumas excepções, um relativo “descaso” por parte dos estudiosos portugueses e lusófilos, em contrapartida, a peça vem suscitando interesse vivo e contínuo por parte de um notável conjunto de hispanistas.
A nona peça de Vicente é uma obra admirável. Sibila quer ser livre. Recusa o casamento enquanto instituição, trazendo à tona de água, o tema da condição da mulher. Margarida Vieira Mendes, em CASSANDRA, de 1992, refere que a personagem Sibila é símbolo da condição humana “uma heroína de teatro, uma alma humana em conflito”. Este conflito diz respeito ao casamento. Cassandra aponta com agudeza os males das mulheres no casamento e o seu direito à isenção, à liberdade. Para a investigadora, as críticas de Cassandra ao casamento, enunciadas de um ângulo feminino, são as mais “copiosas” que conheceu, em leituras de textos da época. Quanto a si “os argumentos de Cassandra contra o matrimónio ultrapassam o seu caso singular e bizarro pois visam a própria instituição”. Vejamos a enumeração oferecida pela investigadora, desaparecida em 1997: superioridade do merecimento feminino; perda de liberdade; sofrimento; brevidade do contentamento; defeitos dos maridos (soberbos, aborrecidos, ciumentos, femeeiros, mentirosos, sem siso); contendas domésticas; cativeiro em casa; fraqueza da mulher na guerra conjugal; ciúmes e estado de inquietação; maternidade penosa; homens brandos que se volvem bravos e diabos depois de casar, um extenso catálogo de defeitos que justificam o repetido no quiero da personagem. Em suma “O casamento é imperfeito, por humanal comprisión: eis a questão fulcral do pensamento reformista, que Gil Vicente teatralizou para a muito religiosa D. Leonor” e, se a nível social se quer tratar da desmistificação do código amoroso cortesão, no plano artístico, resultou num marco das representações teatrais.
No ano de 2003, no Festival de Almagro, em Espanha, foi apresentado o Auto de la Sibila Cassandra, com encenação de Ana Zamora, neta do lusitanista Vicente Zamora. No Pátio Fúcares, vimos a pastora Sibila recusar e repelir o pretendente Salomão. Embora os argumentos do astuto pastor fossem de valia, e o inventário dos seus bens apreciável (passando pela inesquecível menção das suas 32 galinhas), Sibila não se rende e repele com veemência as investidas de Salomão, interessado em desposá-la. A encenação inventiva e delicada, entre o poético e o onírico, ofereceu um espectáculo belíssimo. As figuras e “a poesia mais simplesmente bela da língua castelhana”, no dizer de Dámaso Alonso, e que o romântico Schumann musicou em 1849 (“lieder” – Opus 138, nº 3: “que graciosa é a donzela” e Opus 138, nº 7: Desinquieta vai a moça”, cantigas do mestre Gil, vertidas para a língua alemã por E. Geibel) povoaram o espaço cénico, mostrando a inventiva, hábil e segura carpintaria teatral desenvolvida por Gil Vicente. A sátira moral, as cenas cómicas, a intriga doméstica confluem para as cenas religiosas da terceira parte, onde surge uma nova área cénica, um presépio, que neste espectáculo, parecia ser uma clara evocação ao teatro dos bonecos de Santo Aleixo. Quatro anjos tocam e cantam e Sibila vê no oratório o menino Jesus nu e a sua mãe. A natureza humana de Cristo assim revelada faz sucumbir Sibila ao amor maternal e, consequentemente, ao casamento. Naquela quentíssima noite em terras manchegas o público rejubilou com a Sibila e, no dia seguinte, para as televisões que divulgavam o espectáculo, Gil Vicente era celebrado como um grande dramaturgo de língua castelhana.
Uma boa surpresa foi, portanto, quando no ano 2007, uma tradução do Auto da Sibila Cassandra, vinda do Brasil, foi colocada ao alcance do público de Língua Portuguesa. Augusto Cardoso Bernardes, na recensão feita à tradução, realizada por Alexandre Soares Carneiro e Orna Messer Levin assinala que, com este empreendimento modelar “o público de Língua Portuguesa deixa assim de ter desculpa para não apreciar um dos autos vicentinos mais emblemáticos”.
Que faremos então, com esta Sibila magnífica, em português, no ano que celebra 500 anos? Silvina Pereira