As comédias de Vasconcelos recolhem e aproveitam uma riquíssima tradição dramática. Nelas se encontra, segundo Aníbal Pinto de Castro “um imenso cabedal de cultura posto ao serviço do género cómico”, que não pode limitar-se à cultura literária portuguesa. A mentalidade portuguesa do seu tempo está aqui, mas é uma caracterização da sociedade feita pelo cómico. Jorge de Sena, em “A Eufrósina de Jorge Ferreira de Vasconcelos” assinala uma questão central destas comédias, referindo que “Os equívocos da crítica moderna acerca deste tipo de “teatro” têm sido lamentáveis”, oferecendo dois fortes argumentos para a sustentação da sua e minha tese quanto ao teatro de Vasconcelos. Dizia Sena que “Da aparente irrepresentabilidade dessas peças de longas e literatas falas, que são filhas próximas ou distantes da Tragicomédia de Calisto e Melibea, se tem partido para julgá-las inferiores, pelos padrões do teatro realista burguês do fim do século XVIII e do século XIX; e assim se esquece que, numa peça, uma coisa é o texto impresso, para ser lido, e outra a adaptação para a cena, que pode reduzi-lo a proporções convenientes”. Lembra ainda que em pleno século XX, Bernard Shaw, na sua vastissima Back to Methusalah, consciente da questão, chega a indicar, nos textos impressos, quais os cortes que ele achava poderem ser feitos. Retomando o exemplo da Calisto e Melibea, conclui o autor do Indesejado que “não há dúvida que a peça de Rojas possui uma estrutura que é sobretudo teatral, com os acidentes, as surpresas, os reconhecimentos, os clímaxes, etc., da técnica de cena. E o mesmo sucede às peças de Ferreira de Vasconcelos”.
Comecei por falar da censura nas comédias de Vasconcelos. O desconhecimento da obra é uma das consequências nefastas dessa censura. Vejamos. O acaso, se existe, trouxe-me às mãos uma série de marcadores de livros a exortar a cidade, produzidos pela Livraria Municipal da Câmara de Lisboa. Num deles lê-se o seguinte excerto: “Ah que não há terra no mundo como Lisboa. A conversação da gente, a arte das molheres. A liberdade da vida, nem creais que se pode viver noutra parte”. É claro que o leitor, já arrisca a autoria da frase. É verdade! Jorge Ferreira de Vasconcelos, Eufrosina, V acto, cena 1ª, página 288, da edição de Eugenio Asensio. Fiquei contente! Exultei! Luz, após as trevas. Mas, não é que neste malfadado excerto não aparece o nome de Vasconcelos ou da obra, mas sim, a obra e o autor que o citou. Caramba, um pouco mais de esforço e não ficava nada mal dar o seu a seu dono.
Mas, “porque nem tudo se rege por fados”, ofereço uma ideia que faça justiça, porque “ingratidam nam se pode sofrer”! Explico: Em 1997, encenei a Comedia Ulysippo no Teatro da Trindade. Anos depois, em âmbito académico, haveria de perceber que o autor se encontra enterrado a escassos metros desse Teatro, sepultado em 1585, no cruzeiro central da antiga igreja dos Trinos, destruída por completo aquando do Terramoto de 1755. Embora soterrados, ali repousam os seus ossos e, o belo prédio de azulejos maçons é a ponta visível de um iceberg, de uma outra estrutura antiga que lá se encontra. Lembrei-me que, mesmo em frente do carismático prédio se poderia… caso houvesse vontade… erigir uma estátua que lembre este grande dramaturgo português, o seu teatro e a sua amada cidade.
Jorge Ferreira de Vasconcelos, poderia finalmente reviver, usufruir da companhia e falar de teatro com o Chiado, o Camões, o Garrett e, ainda, megariçar monumentalmente com o Eça, sobre este nosso Portugal.
Eu proponho e subscrevo.
Fiat Lux.
*Continuação do texto saído no JL/Educação 1097, de 17 de Outubro de 2012