Hans, o cavalo inteligente é um livro digno de nota. Tem a chancela da (regressada? ressuscitada? pontual?) Polvo. E, sobretudo, é um livro de Miguel Rocha. A solo. Um dos mais talentosos e inteligentes autores nacionais de BD que sistematicamente surpreende (mais) quando gere as sózinho as pranchas e os espaços entre elas. Com Hans volta a surpreender. Só que a esta frase tem de se seguir outra, iniciada com a palavra “Mas”.
A história do cavalo Hans (der Kluge Hans) é muito interessante, fez história, e parece um excelente ponto de partida. No início do século XX um cavalo espantava multidões alemãs respondendo a perguntas simples (sobretudo aritméticas), batendo com um casco no chão. Na verdade, como demonstrou o psicólogo Oskar Pfungst em 1907 (após uma Comissão anterior ter determinado não haver truques óbvios nas atuações de Hans), o cavalo tinha a capacidade notável de “ler” quem lhe fazia a pergunta, reconhecendo o subtil relaxamento corporal quando chegava à resposta certa. Nessa altura parava de bater. Ou seja, Hans só “sabia” a resposta quando o seu interlocutor a sabia também, e estava à vista do cavalo. Uma questão de conhecimento prévio, da influência de observadores/interlocutores no decorrer de um estudo, e do interpretar de expetativas.
Numa encruzilhada juntando etologia e inteligência animal, curiosidade pela ciência e tecnologia, misticismo e espetáculo de salão, a estória de Hans, o cavalo inteligente captura os interesses e angústias de uma era na própria apresentação do livro, nos pequenos anúncios finais (a lembrar uma pontuação também usada por Alan Moore ou Chris Ware) e no primeiro Ato. Hans, o seu dono/tratador Wilhelm van Osten e o mundo em que se movimentam (sob a forma de um “coro” de espetadores) são aí definidos de uma forma brilhantemente minimal, com Miguel Rocha a demonstrar virtuosismo na gestão da dimensionalidade do espaço, retirando profundidade de modo a constranger as personagens, e usando um negro com muito pouco branco para vincar as suas sombras num ambiente, à primeira vista, anódino. Seguem-se outros quatro Atos, cada um com a sua definação gráfica em termos de luz, cenografia e movimento, nos quais são exploradas em profundidade as relações entre van Osten, Hans, e várias outras personagens, concretizando as sombras iniciais. A exploração de Hans, infâncias e vidas traumáticas, a megalomania narcisista mas insegura de van Osten, as armadilhas do mundo do espetáculo ou a possibilidade de a inteligência de Hans ser uma fraude são alguns dos temas. E ao longo de cada Ato o leitor é surpreendido pela “posição” de Hans na narrativa e pelo tom desta, com laivos mistos de neo-realismo a surrealismo. Só que a surpresa resulta pouco, a ligação entre capítulos é ténue ou nula, e instala-se uma sensação de perda, de que ao traço não se acrescenta uma mais-valia do ponto de vista do texto. E aqui é útil referir o material que esteve na base deste livro.
A BD adapta uma peça homónima de Fernando Campos, apresentada em 2006-07, e a “encenação” de Miguel Rocha vinca essa teatralidade. Não conheço a peça, nem, portanto, posso avaliar da fidelidade da adaptação. Eventualmente Hans fará sentido enquanto teatro, mas não funciona na transposição para o formato de banda desenhada. Pode até ser uma questão de génese das respectivas obras. A peça é descrita como uma compilação baseada em improvisações dos actores (à imagens dos guiões nos filmes de Mike Leigh?), e de facto a personagem/ideia de Hans faz figura de pretexto, de “riff” sobre o qual surgem variações na forma de diálogos/monólogos. Pelo contrário, o estilo de Miguel Rocha parece tudo menos improviso. O contraste poderia ter sido enriquecedor, mas (e assim se concretiza o tal “mas” sugerido no início) não é. Fica um universo gráfico de uma beleza mórbida (Hans não é uma obra sobre redenção), espantoso por si mesmo. Que se gostaria tivesse estado ao serviço de um melhor todo, e não de peças.
Hans, o cavalo inteligente. Argumento e desenhos de Miguel Rocha. Polvo. 86 pp., 12,50 Euros.