O livro acontece na sequência do projeto “Reinserção pela Arte”, iniciativa da Fundação Calouste Gulbenkian desenvolvida em três Centros Educativos da Direção-Geral de Reinserção Social. O projeto pretendeu demonstrar a operatividade das artes em ambiente de internamento, com jovens delinquentes.
Não se tratou de “animação”, de “ocupação dos tempos livres”, de “terapia de grupo”. Lamentavelmente, é comum a confusão entre o trabalho das artes e a utilização instrumental das artes. O labor artístico (eu sei, pode parecer a alguns desagradável associar as artes a atividade laboral) não é a mesma coisa que a utilização da música, do teatro, da dança, da pintura, da poesia para outros fins que não sejam a construção e a apresentação do objeto artístico. Um animador cultural usa a música para animar, o fim último da sua ação. O terapeuta usa o teatro para relaxar, o guru de empresas usa a dança para fazer team building e por aí fora. O artista usa o teatro para fazer teatro, a música para fazer música a dança para fazer dança. O artista faz da sua ocupação nas artes tarefa principal, e nesses termos é um trabalhador das artes: trata-se da sua ocupação social, da sua distinção, da fonte de rendimentos, da área de produção. Como médicos, engenheiros ou funcionários públicos, há artistas bons, artistas medianos e artistas maus. Há-os, até, muito maus e horríveis e outros muito bons ou excepcionais. Mas a centralidade da sua ação não é fazer os doentes sentirem-se melhor ou as crianças dormirem mais descansadas. A sua ação corresponde ao extraordinário feito de criar, de propor objetos reconhecidos como arte. Diferente questão é saber se os resultados do seu trabalho, para terceiros, é lúdico, terapêutico, educativo, inspirador – essas consequências das atividades artísticas, sabemos reconhecê-las.
Procurou-se nos projetos que fizemos nos Centros Educativos com jovens delinquentes construir propostas artísticas coletivas. Não simplesmente pô-los a desenhar, a pintar, a filmar. Antes tê-los como companheiros de criação. Conscientes dos horrores que estes jovens praticaram – homicídio, violação, rapto, ofensas corporais, roubo, etc. Sim, estes jovens internados não são simples vítimas da sociedade – são também agressores. Mas a nossa tarefa junto deles não foi julgar os crimes que praticaram nem desculpá-los socialmente pela sua prática. A nossa tarefa foi propor-lhes a construção coletiva de objetos de arte.
Ao contrário do que é habitual, não uma arte para mostrar fora, mas uma arte para mostrar dentro. Dentro e fora. Estes jovens estão dentro. Dentro de um centro educativo, dentro de uma medida judicial de internamento, dentro de um dispositivo securitário. E estão fora. Fora da família, fora dos amigos, fora da sociedade. E todavia o dentro deles é um dentro que nem é dentro nem é fora – os centros educativos são uma espécie de suspensão do tempo e do espaço – instituições totais, como as classifica Goffman, que tudo abrangem: 24 horas do dia programadas e vigiadas. E este programa total suspende a aleatoriedade, suspende o livre arbítrio, suspende a infração. Nestas casas suspensas procurámos construir objetos livres e por eles defender o princípio da construção sobre o princípio da destruição.
Todos detemos os dois poderes. Todos nos suspendemos nos preconceitos. Todos construímos as próprias casas de internamento e os limites, dentro e fora. Nem todos somos artistas ou delinquentes, no sentido mais substantivo dos termos. Mas vivemos entre eles e porventura com eles.