Não sei se foi mal que veio por bem, mas a verdade é que as suspeitas dos médicos em relação à minha gravidez acabaram por se confirmar e agora, treze dias decorridos sobre a primeira consulta, eis-me de novo não grávida. A minha mãe não podia estar mais contente, pois sempre foi contra o meu relacionamento com Libério e acha que um filho dele não podia trazer nada de positivo à minha vida. Quanto a Salvador, nem vale a pena, pois seria praticamente impossível, depois do sucedido, voltar a andar com ele e nem eu queria. Não sei se a morte do embrião se deu por ordem do meu corpo ou da minha cabeça. O que é certo é que talvez tenha tido demasiadas dúvidas em relação a esta gravidez e também desejos sombrios e pensamentos desaconselháveis a qualquer mãe que queira dar à luz um filho saudável. Seja como for, sinto-me aliviada com o desfecho desta situação e não pretendo martirizar-me com remorsos e arrependimentos, pois problemas que me cheguem já eu tenho com fartura.
Os quilos a mais são a minha chatice número um, depois da prisão de Rute, e uma vez que já estou habituada a Libério não gostar de mim. Estou determinada a emagrecer, pois quero continuar a ser requisitada e a ter as portas abertas ou pelo menos a ser capaz de as abrir. Foi com esta ideia que, no dia a seguir a ter feito aquela espécie de aborto, resolvi passar pela Fnac do Chiado, à procura de um livro de dietas milagrosas, cuja eficácia tinha sido pessoalmente comprovada por uma amiga de Másha, e também para comprar o dicionário de rimas para Rute, pois o irmão dela, embora tivesse prometido que o comprava, nunca mais se tinha lembrado de tal coisa.
Quando ia à Fnac gostava de me sentar no café a saborear um bolo e a folhear uma revista, mas naquele dia dirigi-me imediatamente para a caixa, pois não queria cair na tentação de me render aos prazeres (tão falazes) do creme pasteleiro. Ia a sair da loja, vinha Adélia a entrar. Mesmo que quisesse fazer que não a tinha visto, não podia, porque ela cumprimentou-me imediatamente com um beijo muito repenicado, o que me pareceu estranho, pois não era costume dela. Mas esta estranheza não foi nada comparada com o que acabei por saber na sequência desse beijo.
– Vou deixar o irmão da tua amiga – declarou, e depois desatou a chorar.
Fiquei sem saber o que dizer e impremeditadamente acabei por lhe perguntar se queria lanchar comigo. Sentámo-nos no canto mais recatado que conseguimos encontrar e eu deixei-me ficar calada, pois nestas coisas, já se sabe, quanto mais perguntas se fazem, mais o outro tende a chorar.
– Estou mesmo decepcionada com ele – disse ela, assoando o nariz a um guardanapo de papel. Deixa estar que não és a única, disse para comigo.
– Imagina, é pedofóbico – fungou.
O coração caiu-me aos pés. Pedófilo?!, repeti mentalmente.
– Sabes o que é?
Que pergunta a dela. Nos tempos que correm quem é que não sabia o que aquilo queria dizer?
– Tem pavor às crianças – disse ela. – Fez uma vasectomia há quatro meses, mas só agora é que eu soube. Não quer ter filhos por nada deste mundo…
Então, mas afinal que conversa era aquela? Será que ele não queria ter filhos para evitar o abuso sexual que sabia de antemão não poder controlar?
– Não sabia que os pedófilos tivessem esse tipo de preocupação – confessei.
– Pedofóbico, pedofóbico! O Rui tem aversão às crianças, odeia-as! Não é pedófilo, é pedofóbico!
– Desculpa, nunca tinha ouvido falar nisso – disse eu.
– A procriação é um dos mandamentos básicos da nossa Igreja; se ele não queria fazer filhos, por que raio se casou comigo?
– Se calhar gosta de relações poligâmicas…
– Defendemos a poligamia não por libertinagem, mas por uma questão de honestidade; ou tu pensas que os monogâmicos não acabam sempre por ter relações extra-conjugais? Além do mais, só assim conseguirmos garantir um número aceitável de nascimentos por família.
– E a Regina não se importa de ele não querer ter filhos? – perguntei.
– Parece que sofre do mesmo mal dele; diz que matou o próprio filho à facada, com a desculpa de ser sonâmbula.
– E não foi presa?
– Sabes que os malucos safam-se sempre…
Bem, pelo menos ela não era tão maluca como parecia, queria divorciar-se, dizia que não podia continuar casada com um homem que usara a sua boa-fé para o deboche, e que ter filhos era uma bênção da qual não pretendia abdicar nem mesmo por amor a Libério.
Será que aquela história era mesmo verdadeira? É certo que ele reagira sempre mal quando, no passado, eu lhe dera a notícia de estar grávida, mas daí até sofrer de um distúrbio mental daquela gravidade… Por outro lado, o tio dele também não era assim? Seria mal hereditário? Curioso não deixava de ser que afinal e contra todas as suspeitas de Rute não fosse por causa da falta de saúde de Adélia que o irmão não lhe dava sobrinhos.
Pensava que Adélia tinha esgotado a sua capacidade de me surpreender, pelo menos naquela manhã, mas estava enganada. Ia dedicar-se, dizia ela, à produção e apresentação de programas de culinária, com enfoque na gastronomia mediterrânica, para doentes com colite ulcerosa. Aliás, fora por esse motivo que tinha ido à Fnac, para comprar uns livros sobre os benefícios do azeite, antes de o programa piloto ir para o ar, o que deveria acontecer sensivelmente dali a três semanas. Criatividade não lhe faltava. Mas que viabilidade poderia ter um projecto daquela natureza? Afinal, quantos doentes com colite ulcerosa havia em Portugal?
– Qual Portugal?, o meu show vai é para os Estados Unidos!
– Excuse me?…
– Pois, Estados Unidos!- repetiu ela.
De acordo com os seus dados, mais de quatro milhões de americanos padeciam daquela enfermidade. Até já tinha agente e contrato assinado com um canal de medicina e saúde da TV Cabo. Sempre imaginei que ela fosse uma rapariga desenrascada, mas não a este ponto…
Passei o resto do dia a pensar em Libério. Seria verdade aquilo que ela me contara? À noite, dava voltas e mais voltas na cama. Até que resolvi tirar a prova dos nove e liguei-lhe, pedindo que viesse ter comigo, com a desculpa de ter uma coisa do interesse dele para lhe contar.
– Sabes que horas são? – perguntou, contrafeito.
– Vem lá, é mesmo importante – disse eu, num tom intrigante.
Lá o convenci. O plano era anunciar-lhe que estava grávida e depois esperar para ver se a reacção dele revelava indícios de perturbação mental.
– Espero que o que tenhas para me dizer valha mesmo a pena – disse ele, mal entrando no meu apartamento cerca de 45 minutos após o telefonema.
– Entra, entra.
– Amanhã tenho de me levantar cedo e ando completamente estourado!
Será que ele alguma vez me tinha amado? Tinha vindo ter comigo apenas porque pensava que eu soubesse de alguma coisa que lhe dissesse respeito. De algo relacionado com a irmã, ou talvez com o clube e a nova patroa. Via-se bem, nada ali lhe interessava, nem mesmo o sexo.
– Estou grávida de quatro meses – disse eu, de supetão.
– O quê? – exclamou ele, completamente surpreendido e afastando-se de mim até bater com as costas na parede.
– Estou grávida de quatro meses – repeti, com uma calma maquiavélica.
Tu és é uma serpente diabólica! Não tenho nada a ver com esse rebento maligno e não voltes a pôr-te à minha frente, dás-me nojo! – E nisto saiu porta fora.
Escusado será dizer que depois desta cena é que eu não consegui mesmo pregar olho. Passei a noite inteira a tentar perceber o que é que eu poderia ter visto naquele homem que me tivesse feito amá-lo tanto e tão cegamente, mas tudo o que via era uma miragem.