Escrever sobre a morte da Isabel Lhano é irreal. Não vai poder caber nas coisas que acontecem, apenas numa certa maldade que imaginamos mas que não ganha sentido, nem tem sentido algum. Demorará. Talvez para anos, para o resto da minha vida. Saber que a Isabel morreu, ter visto, afinal, pode pouco contra a incredulidade, a expectativa superior de termos ainda tanto tempo, tanta coisa a dizer, a fazer, tanto debate contra a torpeza e a favor de um mundo melhor.
Ainda há dias escrevi sobre a nossa amizade, como ela celebrava os seus 70 anos de idade, como se iam fechando as suas exposições e a importância que traziam para avaliar a sua obra e repensar o que ainda havia para pintar. Quando escrevi, tínhamos a impressão de rever as coisas para preparar um novo ano, uma nova década, um tempo novo que abrisse outras dimensões de nós mesmos, outra parte da nossa amizade. Não poderia imaginar que esse texto dividisse o tempo da vida e da morte, que estivesse, afinal, como manifesto de despedida, um aceno a alguém que está a ir embora sem que o soubesse.
A Isabel foi embora porque um aneurisma lhe destruiu a cabeça. Quando cheguei junto dela, deitada na ambulância, levantava um braço, como se apontasse para algo que via adiante, e dizia repetidamente: “Eu não quero ir”. Por isso é que sei para sempre que a sua morte foi uma ida para algum lugar. Foi um comando de viagem, algo que a tirou de casa na noite de sábado, depois do jantar, depois de se rir com o Luís, depois de rir do caso das gémeas, a política que nos trama a todos, da mesma sensação de sermos apenas usados. Ultimamente, a Isabel queria estar em casa. Queria apenas estar com o Luís, em casa, ver alguma série na televisão, não aturar confusões, diminuir a sua exposição à fúria e à folia dos que arranjam problemas por ócio.
Tínhamos saído na sexta. E na sexta ela estava feliz como só antigamente. Parecia uma catraia, como era fácil parecer. Ia e vinha. Perguntava aos desconhecidos quem eles eram, queria apresentar-se, dar as boas-vindas, oferecer-se como amiga. E era isso que a definia. Amiga de toda a gente. Conhecia mais pessoas do que ninguém. Era uma espécie de alegria em metro e meio que abundava para cima de quem viesse. Falávamos com a Liliana e ela queria saber quem ela era. O que estava a fazer na nossa mesa naquele instante. E havia o Nathan, que era novidade. E tinha acontecido alguma festa, ou ia acontecer, e ela perdera ou ia perder, mas era fundamental saber tudo para ainda sermos nós a mandar, porque somos os mais velhos das festas todas e já vimos muita dança, muito engate, muita amizade que não deu em nada. A nossa amizade, na verdade, deu em tudo.
Penso agora que isso nos diferenciará para sempre. A nossa amizade deu em tudo. No muito importante, estivemos invariavelmente juntos. Na sexta, por sinal, eu deveria ter viajado para Belgrado. Não pude viajar. Alguma melancolia bizarra me fez desistir da viagem já paga. Algo parecia pedir que ficasse. Para poder passar a noite seguinte a correr os hospitais, cumprindo o macabro protocolo de contingência que o Governo impôs, a ganhar consciência de que a Isabel, quando parou por um instante na rotunda ao pé de sua casa, entrara em coma. A partir de então, acabou por ir para adiante. Para esse lugar que antes apontava com o braço levantado. Para onde dizia não querer ir. Ela, que nunca fazia fretes.
Tenho a impressão de que protestou contra o frete da morte. Protestou até ao fim. Nem que ali fosse Deus, Ele próprio, abrindo os braços para os abraços que só ela sabia dar. Ela, por seu lado, dizia que não. Abdicaria certamente do conforto do Paraíso para ficar sossegada na sua luta do costume, metida com suas convicções e, sobretudo, dona de si mesma. Estava absolutamente farta de ter sido cidadã numa Ditadura e das ditaduras dos afetos, tantos engodos. Ela queria era ser livre. Por isso protestou. Foi uma guerreira brava e lúcida. A Isabel soube bem o lado certo e o lado errado da História. Esteve do lado certo.
Que não esteja mais aqui, dá-me a ideia de me ter morrido o lado esquerdo do corpo, um lado de dentro, uma parte inteira. Não era nada pela metade. Uma vastidão. Morreu-me uma vastidão. Não vou acreditar jamais.