Por teimosia nacionalista do meu Pai (a quem devo o gosto pela mitologia e pela música, designadamente ópera) fui baptizado, segundo os ritos ortodoxos no cruzador Averoff, navio chefe da Armada grega, que aportou a Lisboa em 1937. Como já tinha seis anos, lembro-me de ter sido mergulhado numa tina de óleos santos por um padre de grandes barbas. Depois, com um fato branco de marinheiro, tirei com ele uma fotografia debaixo dos canhões da proa. Cerca de 30 anos mais tarde recebi uma carta na qual o Patriarca da Igreja Grega me dizia que, remexendo em papéis, tinha encontrado essa mesma fotografia e queria saber o que eu era. Respondi, dizendo-lhe que era «zografos» – pintor.
Creio que, na verdade, nunca fui outra coisa, embora no decorrer dos anos 50 tivesse desenvolvido vasta acção na política e no ensino particular. Mas a minha amiga Teresa Gouveia disse-me, há alguns anos, que eu afastava tudo o que prejudicasse o meu trabalho de pintura. Tinha muita razão; a questão é que o ensino exigia dedicação e a política inquietava-me. Em 1960 abandonei ambas as actividades definitivamente. Depois dessa sábia decisão, andei fugido e acabei preso. Para trás tinham ficado os meus cursos livres no Liceu Francês e de didáctica do desenho no Instituto de Educadoras (Mitza) e alguns escritos sobre o grafismo infantil, publicados na Seara Nova de Câmara Reis, de cuja redacção fazia parte. Organizara também as conferências «Para uma Educação Estética no Ensino».
Quanto à política os anos tinham sido agitados. Fui expulso por dois anos do Curso de Arquitectura, envolvido num processo que abrangeu dezenas de estudantes. Simplificaram-me as opções porque a pintura que praticava no meu primeiro atelier com Jorge Vieira e Tomás de Figueiredo, se tinha tornado dominante. A tropa, entre 53 e 55, constituiu uma interessante experiência colectiva. Acabei preso no Forte da Trafaria (com prisão disciplinar agravada) por ter falado verdade e a ter demonstrado enquanto testemunha no Tribunal Plenário, onde me encontrava com guia de marcha do Governo Militar.
O Forte, para os oficiais, era uma espécie de pensão onde pintei a «Paisagem da Trafaria». Em 1957 e depois em 1961, fui candidato a deputado por Lisboa mas não corria o risco de ser eleito. Em 58 proferi uma conferência polémica nas Belas Artes – Inactualidade da Arte Moderna. Entrei conspiração da Sé, organizada por oficiais à frente dos quais se encontrava o major Pastor Fernandes. No dia do golpe, entrei no Regimento do Trem Auto onde encontrei dois outros ex oficiais milicianos como eu, Fernando Amaro Monteiro e Francisco Sousa Tavares, que me disseram que a revolta abortara. Desaparecemos na noite. Procurei o Augusto Abelaira que estava a ouvir notícias na rádio e fomos ao Palácio de Ribeiro Teles, a Santa Marta, centro de conspiração monárquica. Eu subi e Abelaira, ficou no pátio. Reencontrei o Francisco no meio dos conspiradores e de repente apareceu alguém esbaforido que disse: «A Pide está lá em baixo». Era o Abelaira a passear de um lado para o outro, por causa do frio.
No começo dos anos 60, na sequência da assinatura do Programa para a Democratização da República, fui procurado em minha casa pela PIDE, para ser preso. Estava ausente e resolvi não me apresentar, tanto mais que estávamos nas vésperas de «Beja». Entrei assim num período conturbado. Estive refugiado em diversas casas de amigos (um «exílio de luxo» dizia Francisco Zenha). Entre outras, na casa de Rui Grácio, onde pintei a «Homenagem a Carpaccio».
A seguir pedi asilo político na Legação do Brasil. Urbano Tavares Rodrigues deixou-me perto e depois fui escoltado pelos diplomatas Donatello Grieco e Alberto da Costa e Silva até à residência do embaixador Negrão de Lima. Comecei aí o pior período da minha vida. Bem entendido, não porque o tratamento não fosse o melhor possível, mas porque a falta de privacidade entre os numerosos asilados, no rescaldo de Beja, gerou um huis clos onde as lutas às vezes se tornavam perigosas. Mas conseguia isolar-me no sótão e lá pintei, rodeado de malas, «O Estudo para Marquises» com o qual, depois, ganhei a Bolsa Malhoa.
Saí da Embaixada, ao fim de seis meses, amnistiado, como os outros signatários do Programa para a Democratização. Fui preso pouco tempo depois, como esperava, e acusado, para meu espanto, de ser membro do Partido Comunista. Tive honras de fotografia na 1.ª página do Diário de Notícias e da captura na Televisão. Nunca fui membro do Partido, mas sejamos justos com todo o mundo, as «provas» eram objectivamente contra mim. A PIDE há muito que se interessava pelas minhas actividades. Tinha dito até a Raul Rego que eu era comunista mas ele respondera «Não acredito, até beija a mão às senhoras». De resto, a Polícia disse-me que não me queria julgar; bastava que confessasse quando entrara para o Partido, quem me tinha aliciado, quem controlava e poderia ir em liberdade para o estrangeiro ou para onde quisesse. Mas eu não podia contentá-los. Na verdade, quem eles procuravam era Joaquim Campino, representante do Partido Comunista na Junta Patriótica de Libertação Nacional (na qual eu representava a Seara Nova) e que era constituída por representantes de todos os grupos oposicionistas – Programa da Democratização, Maçonaria, Seara Nova, católicos progressistas, etc. Campino era um preso de Peniche, em liberdade condicional. Nunca foi encontrado e quando a Polícia desistiu, depois de vários inquéritos, de me considerar comunista, disse-me que afinal não era eu «era o Piteira Santos», nessa altura em Argel. Bem entendido não os desmenti e disse-lhes com uma ironia velada que tinha tido duas grandes surpresas quando fora preso: uma que era comunista e outra que Piteira Santos também o era. Mais tarde contei a história ao Piteira e ainda nos rimos um bocado, na varanda do Grémio Literário.
Puseram-me em liberdade, porque tinham cometido um erro judiciário, mas ficaram na dúvida até ao fim. Depois do Aljube, fiz uma exposição na Galeria do Diário de Notícias, e utilizei a foto da PIDE no catálogo – passei a utilizá-la como foto oficial. Fui para Roma para cumprir o regulamento da bolsa Malhoa e fiquei em casa de Mário Ruivo, meu antigo companheiro na Seara. A Pide deixou-me sair mas pediu ao embaixador um relatório da minha estadia. Dessa estadia resultou «A Praça de Miguel Ângelo», cuja geometria Almada apreciava.
No tempo de Marcelo Caetano ainda fui detido quando ia para Espanha. Meteram-me na prisão dos contrabandistas, num subterrâneo e à noite apagaram as luzes e foram-se embora. No dia seguinte, libertaram-me.
No Aljube, entretanto, onde passara cerca de seis meses dos quais 40 dias no segredo dos «curros», compensei a minha estadia no «Brasil» recuperando a boa disposição para a qual muito contribuíram os meus companheiros Joaquim Pinto de Andrade e Medeiros Ferreira. Não me era permitido pintar mas desenhava. Um dia recebi um livro e no meio de uma página estava escrito – Bom tempo no Canal. Era uma resposta de Mário Soares a uma mensagem que lhe enviara, utilizando o pedido do livro de Nemésio «Mau tempo no Canal». Também recebia iguarias trazidas pela minha amiga Kukas. Um dia ela acrescentou flores e o guarda, indignado, perguntou-lhe: «A Senhora acha que isto é sítio para trazer flores?» e ela: «As flores ficam bem em qualquer sítio». Fiquei tão ressentido com o período da Embaixada que quando me vieram comunicar que saía do isolamento para companhia, disse para mim mesmo: «Que chatice, tinha aqui a vida organizada». Estava a enlouquecer e não o sabia. É isso que a prisão tem de imoral, subrepticiamente, insidiosamente, enlouquece os seres humanos que são livres por natureza.
Depois do 25 de Abril, além das alegrias, tive desilusões. Indignaram-me as proibições da representação na Bienal de São Paulo e da exposição, no Museu de Arte Moderna de Paris, no tempo do gonçalvismo. Nessa altura, algumas dezenas de artistas portugueses assinaram um documento dirigido ao Presidente Costa Gomes, no qual se protestava contra essa discriminação cultural. Manuel de Brito, galerista da 111, mostrou-mo e disse-me que me tinham posto como primeiro signatário. Foi a mais alta condecoração que recebi.
Fui director e consultor das Relações Internacionais da S.E.C. mas continuei a pintar. Nunca mais voltei ao ensino e só pontualmente participei politicamente. Mas a história de ser comunista ficou na memória das pessoas do meu tempo, com prejuízo da minha coerência. De qualquer modo, nos anos 60 eu não deveria desmentir e depois já não valia a pena.
Sei que, ainda recentemente, alguém me referiu como comunista. E vieram-me à cabeça os versos de José Gomes Ferreira: «O Nikias / sempre para mim foi um problema / porque amava os sabores do sistema / e era anti-fascista / … / E chegou a estar nos curros por comunista / Mas não o era …»