O nome já era “antigo” na sua memória, e é justamente sempre o título da exposição que primeiro lhe aparece, em regra uma aparição noturna, como vindo de um sonho. Na Próxima Encarnação Dou-te um Beijo na Boca, que Albuquerque Mendes apresenta na Galeria Graça Brandão, em Lisboa, é também, como sempre, de alguma maneira uma “revisitação” da sua obra, em que os diferentes momentos expositivos e performáticos constituem uma “espécie de família”, como diz o artista ao JL. Uma obra marcada pela ironia e pela teatralidade e que, no fundo, tem sempre a ver com a infância, adianta ainda.
Albuquerque Mendes nasceu em Trancoso, em 1953, e vive em Leça da Palmeira há décadas. Desde criança que evidenciou a sua inclinação para a pintura e para o desenho. Mas para corresponder às espectativas maternas começou por seguir Engenharia Civil, na Universidade do Porto. Porém, a arte seria mais forte, mesmo do que uma certa vocação eclesiástica. Não foi engenheiro civil nem padre, antes um pintor e performer, um dos nomes mais importantes da arte portuguesa contemporânea.
Estudou no Círculo de Artes Plásticas de Coimbra no início da década de 1970, tendo feito a primeira exposição em 1971. Nessa década, iniciou também o seu pioneiro percurso na performance com A Arte É Bela, Tudo É Belo, em 1974. Foi um dos participantes na Alternativa Zero, de Ernesto de Sousa, em 1975, e fez intervenções públicas, happenings, performances, como Ritual, Lígia ou Passagem, no país e a nível internacional.
Integrou o grupo Puzzle com outros artistas, no Porto, a seguir ao 25 de Abril, e mais tarde, com Gerardo Burmester, criou a Associação de Arte Espaço Lusitano, que dinamizou a cena artística portuense e procurou contribuir para a divulgação da arte portuguesa. Tem apresentado o seu trabalho em Portugal, Brasil, Espanha, França, entre outros países, em múltiplas exposições como a antológica Confesso, no Museu de Serralves (2001), Lágrimas, no Rio de Janeiro (2000), Na Inquietude do Desejo, no ciclo Ações Estéticas Quase Instantâneas, no Museu Soares dos Reis (2018), O Lugar da Casa, na Cooperativa Árvore (2015), ROSEBUD, no Quarto 22 do Colégio das Artes de Coimbra (2016), ou a recente Com a Garganta Seca, no mesmo local, e O Homem Que Vê Aviões Debaixo da Terra, no Teatro Garrett, na Póvoa de Varzim (2022).
Jornal de Letras: As pinturas que mostra em Na Próxima Encarnação Dou-te um Beijo na Boca foram realizadas especialmente para esta exposição?
Albuquerque Mendes: A maioria foi feita nos últimos dois anos, mas normalmente eu coloco sempre nas exposições fantasmas dos natais passados (riso)… Ou seja, há sempre quadros que vêm de exposições anteriores.
Porquê?
Aconteceu sempre assim. Há qualquer coisa do meu passado que quero revisitado em cada nova exposição. Um pouco como os cantores fazem com as canções, o Frank Sinatra fazia-o maravilhosamente, revisitando-as de outra maneira. Eu faço-o com as pinturas, é um pouco Charles Dickens (riso)…
Como se puxasse o fio condutor de toda a sua obra?
É exatamente nesse sentido. Como se fosse uma espécie de família. Como se juntasse os filhos, netos e bisnetos… Porque muitas vezes ponho quadros que já foram mostrados e vistos muitos anos antes.
Neste caso, há, por exemplo, uma ligação com a exposição que fez na Póvoa de Varzim, O Homem Que Vê Aviões Debaixo da Terra?
Essa tinha muito a ver, pelo menos na minha cabeça, com uma outra que tinha feito também aqui na Galeria do José Mário Brandão, há uns anos, e na qual se entrava e havia uma casa. A ideia era a mesma, um sítio que fosse uma espécie de útero, onde se gostaria de ficar para sempre. E essa é uma ideia muito recorrente nas minhas exposições. No fundo, cada pessoa tem o seu Rosebud (riso)…
Rosebud, de O Mundo a Seus Pés, de Orson Welles, é, de resto, evocado numa outra das suas exposições.
Exato. Acho que volto sempre à infância. Quando olho para as minhas exposições, há sempre esse lugar comum, esse ponto de chegada.
Que é o lugar da própria criação?
Sim, sim. No fundo é isso, a criação, o começo, que depois sublimo de diversas maneiras. Na Próxima Encarnação Dou-te um Beijo na Boca é muito diferente da última que fiz no Colégio das Artes, em Coimbra, em que acabava, aliás, com um vídeo de um comboio a partir, do ponto de vista do comboio a afastar-se, vendo-se só os trilhos, numa projeção numa tela gigante. Aqui também há um dispositivo cénico e esta exposição é especial, porque tem elementos que disparam ao espectador informação que tem a ver com a rua, informações industriais.
De que modo?
Como é obrigatório ter na galeria, também tenho um extintor na entrada da minha exposição, só que não está colocado como é costume, mas a quatro metros de altura (riso), e está assinalado com um lettering feito de propósito e uns cartazes que fiz que dizem “Fogo, fogo, fogo”…
Não vá a pintura incendiar ou pegar fogo…
E está lá o extintor, mas deslocado do sítio onde deveria estar e onde ninguém o poderá ir buscar. Esta exposição é feita de trabalhos que têm um fio condutor apenas na minha cabeça, e muitas vezes as pessoas não encontram aquilo a que se pode chamar o estilo do artista.
Pela sua diversidade?
É que vêm de diferentes proveniências e nem todos são verdadeiros. Inclusivamente, há um serviço da Vista Alegre que é mostrado, uma baixela especialmente fabricada para servir no dia 17 de março de 1953 num jantar de homenagem a Jean Cocteau, quando veio a Portugal e foi recebido pelo Presidente da República, Craveiro Lopes. Só que tudo isso é uma encenação, nada disso existiu. Também há um quadro do Henrique Medina que foi retirado da tela, raspado e posto num boião de compota, igualmente deslocado do seu sítio. Ainda se nota o quanto ele era virtuoso a pintar. Só espero não ter um abaixo-assinado para ser reposto outra vez (riso)…
EXPOSIÇÕES SONHADAS
Há uma forte ironia no seu trabalho, expressa muitas vezes logo nos títulos. Como surgem?
Este título tem a ver com um certo imaginário de que a Terra era plana e com o facto de as pessoas passarem o tempo a não fazerem o que querem, por questões que se prendem com a religião, com a própria sociedade, que impedem os seres humanos de resolver alguns dos seus impulsos no imediato. Daí a ideia de reencarnação, de se tornar outra vez carne, para se poder dar a alguém o beijo que não se pode dar num determinado momento. E foi a partir do título que efabulei a exposição.
Concebe as exposições a partir do título?
Sempre. Parto realmente do título para as fazer. Depois penso as redomas de vidro, quase como se fossem relicários, ou toda uma série de dispositivos que uso na montagem para contar a minha história.
Mas como lhe ocorre esse título primordial?
A verdade é que, normalmente, me aparece de noite. Estou a dormir, acordo e vejo a exposição. Até já me aconteceu dormitar um pouco enquanto estou concentrado a pensar, e acordar uns segundos depois e ter uma ideia para um quadro ou uma performance. É muito engraçado, mas o meu processo criativo vem com os sonhos, de noite. De dia, vou para o atelier trabalhar, mas em função da ideia que já tenho da exposição.
Portanto, não vai pintando porque tem necessidade?
Não, não. Vou todos os dias para o atelier, mas muitas vezes não faço nada, vejo pinturas, leio livros, faço uns bonequinhos, escrevo uma carta. Passo os dias no atelier, como o Guardador de Rebanhos, do Pessoa (riso), sem fazer nada, mas sempre a pensar como vou mostrar uma ideia, jogar com toda uma amálgama de elementos. Não faço nenhuma exposição sem um plano. Esta é a terceira individual deste ano, porque é o dos meus 70 anos e tinha já uma série de ideias e pensei que era agora o momento para as concretizar. Claro que tenho algumas que nunca irei fazer na vida.
Porquê?
São difíceis de resolver. Quando tive a minha exposição antológica em Serralves, por exemplo, fiz uma peça que pensava nunca poder fazer.
Tango?
Sim. Tinha a ideia de uma pintura de um palco, com uma paisagem, um espelho e uma cortina gigante, em veludo vermelho, que se fundia no céu… e aparecia um casal de dançarinos que dançavam ao som de Gardel, das suas primeiras canções gravadas nos anos 20, com muito ruído. E só a fiz pela teimosia de João Fernandes, que foi o comissário da exposição e quis incluir uma peça nova minha. Foi feita e já mostrada várias vezes. Serralves acabou por comprá-la e ainda no ano passado foi apresentada na Casa da Música, exatamente com o mesmo dispositivo e os dançarinos a dançar durante horas e horas e os homens a montar o espelho no final… Mas tenho outras que certamente nunca farei.
Por exemplo?
Uma peça chamada Via Láctea, uma ideia que passa pela criação de um túnel com vento e que ninguém vai querer (riso). Aliás, mesmo se vivesse mais 70 anos, não conseguiria fazer todas as coisas que sonho durante a noite.
NA PARAGEM DO AUTOCARRO
Falou de um constante regresso à infância no seu trabalho: também uma nostalgia do tempo que passou em Trancoso?
Tive uma infância cheia, daquelas dos livros… Trancoso era uma Babilónia perdida no tempo, nos confins da Idade Média, por isso até tive um castelo para brincar (riso).
Já pintava nessa altura?
Sempre pintei e desenhei. Quando era miúdo, havia duas coisas que gostava de fazer, em que me sentia bem e me refugiava: pintar e ler. E fui, aos 17 anos, estudar para o Círculo de Artes Plásticas de Coimbra (CAPC), uma espécie de atelier livre, onde eram professores o Ângelo de Sousa e o João Dixo, depois o Alberto Carneiro.
Que foram importantes referências?
O Ângelo de Sousa levava slides para as aulas e falava sobre as obras. Lembro-me perfeitamente de que na primeira, numa quarta-feira, às três da tarde, mostrou um da Mala, de Marcel Duchamp, a preto e branco. Aprendi História de Arte a preto e branco. A primeira vez que vi um Rothko, disse “Afinal, isto tem cor!” (riso). E a seguir ao Duchamp, trazia o slide de uma coluna dórica ou de uma pintura persa. O elo de ligação era muito abstrato, mas foi muito importante para mim. Com o Alberto Carneiro foi diferente, porque tinha outro tipo de abordagem e de exercícios, falava da razão das coisas, do lado social, era tudo mais geométrico no sentido da politização do objeto artístico. E depois fui à minha vida (riso)…
E quando soube que queria ser artista?
Lembro-me do momento exato: foi um dia em que ia apanhar o autocarro para a faculdade onde estava a estudar engenharia, no Porto, onde vivia e já casado, com uma filha… Estava na paragem e pensei que se o que gostava era de pintar e não sabia fazer outra coisa, de ver arte, ir a museus e galerias, se os meus amigos também, se toda a minha vida andava à volta disso, por que continuava na engenharia só porque a minha mãe queria? Encontrei-me com o Ângelo e disse-lhe que iria mudar a minha matrícula para as Belas-Artes, e ele disse que eu não precisava das Belas-Artes para nada, porque nunca seria professor de Educação Visual… Por causa do grupo Puzzle, com o João Dixo e com o Ângelo, até à morte, sempre tivemos uma relação de irmãos.
Tomou essa decisão quando já tinha feito exposições e performances e o seu trabalho reconhecido…
Sim, tinha 22 ou 23 anos, já estava no meio, tinha saído na Flash Art e numa série de revistas, participado em exposições e festivais internacionais de performance, inclusive tinha sido convidado para o simpósio organizado pela Orlan, onde estive com toda aquela gente incrível. Mas não tinha abandonado a engenharia, porque queria agradar a gregos e troianos, a mim próprio e à minha mãe que queria que eu fosse engenheiro.
PALCOS PARA A PINTURA
E como começou a fazer performance?
Tinha uns 18, 19 anos, ainda andava no CAPC em Coimbra, e sentia que a pintura não me chegava, que havia outras maneiras de explicar às pessoas o que queria fazer. Foi assim que comecei a fazer performance sem sequer saber bem o que era e que se chamava assim.
Foi um pioneiro no país.
Eram umas intervenções, e no princípio o Ângelo até brincava muito com o que eu fazia. Mas o Ernesto de Sousa convidou-me para a Alternativa Zero. É igual, para mim, fazer pintura ou performance. Só o meio é diferente.
Em que sentido?
Acho que a pintura e a performance são muito parecidas. Embora sejam linguagens diferentes, o corpo é o mesmo e sou eu a tentar comunicar coisas às pessoas e a estabelecer um diálogo.
Há, de resto, um lado performático, cénico, em toda a sua obra. O que lhe interessa nessa teatralidade?
Normalmente gosto de mostrar o meu trabalho criando palcos para as pessoas verem a pintura, para que todo o gozo visual que vão reter na sua memória seja pleno, o máximo que posso dar com a maior amplitude.
Além dessa dimensão teatral, há também uma forte presença da literatura no seu trabalho.
É verdade que não é a pintura que me influencia, embora haja pintores que adoro. É o livro que faz o clique, como noutros artistas a música. Estou sempre a ler, ficção, poesia, e isso cria-me pontes, imagens. Se calhar as ideias surgem nos sonhos porque leio sempre à noite, antes de dormir, e há qualquer coisa que fica no subconsciente. Mas não fixo. A propósito destas polémicas à volta do Camilo, do Eça, até pensei que tinha de os reler, porque não me lembrava de algumas coisas. Claro que há livros que estou sempre a reler, como os da Agustina, que adoro. O meu trabalho tem de facto muito a ver com a literatura, a pintura aparece no final.
Que título tem já na cabeça para a próxima exposição?
Lux, Luz, que vai ser em Trancoso, na capela de Santa Luzia que sempre adorei, onde vou mostrar 200 trabalhos que fiz durante a pandemia. Eu tinha sido operado em março de 2020 e, portanto, apanhou-me em cheio e precisei de me organizar, de criar uma disciplina de trabalho. Todos os dias ia para o atelier às nove horas e comecei a trabalhar em têmpera e com um papel muito fino, em que não pudesse errar. Ou seja, tudo o que fizesse, tinha que ficar. Não rasguei uma folha. São coisas figurativas, algumas muito, muito realistas. E desde sempre pensei que só iria apresentar o trabalho no seu conjunto, e é o que irei fazer no próximo ano.