“Pessoal, íntima, talvez um pouco triste”, a sua autobiografia filmada, Ainda não Acabámos, estreia a 8, no Teatro São Luiz, em Lisboa, onde tem mostrado os seus documentários sobre artistas plásticos e vão ser repostas em cena Doce Pássaro da Juventude (a partir de amanhã, 5, e até 14) e Gata em Telhado de Zinco Quente (de 18 a 28 de fevereiro), de Tennessee Williams, duas recentes criações para os Artistas Unidos, que fundou e dirige há 20 anos. No Teatro da Politécnica, espaço da companhia, continua, até 13, a sua encenação de Quarteto de Heiner Müller, de que publicamos a crítica de Helena Simões. Tal como a de Manuel Halpern ao filme que o encenador e cineasta chama ironicamente um “autogolo”. Ao JL, numa entrevista, com a sua habitual agudeza, Jorge Silva Melo recusa o “pedestal”, o “lugar do histórico” e afirma que quer continuar a criar, embora só o convidem para conferências. Ainda não acabou a sua luta
Uma centena de encenações e duas dezenas de filmes, fundador de duas das companhias determinantes das últimas décadas, A Cornucópia e os Artistas Unidos (AU), aos 67 anos, Jorge Silva Melo tem por certo assegurado um “lugar” na História do teatro e do cinema portugueses. Mas ainda não está “arrumado”, diz ele. Não quer ser um “histórico”, um “has been”, não está disposto a ser um reformado conferencista, nem embarca em festas e festivais, que segundo ele, marcam a atual cultura portuguesa. “A literatura, o cinema e o teatro são coisas do quotidiano, como ir à padaria de manhã e comprar o pão”, adianta ao JL. Esse tem sido o seu sustento. Podem achar que está velho, que é já um “académico”, suspeita, mas continua a lançar como sempre ideias contra a corrente. O teatro nunca foi outra coisa para ele se não essa “luta”.
Nascido em Lisboa em agosto de 1948, estudou no Colégio Maristas, depois no Liceu Camões e na Faculdade de Letras de Lisboa, onde se estreou no grupo de teatro. Em 1969 foi para Londres, com uma bolsa da Fundação Gulbenkian, estudar na London Film School. De regresso ao país, fundou, com Luís Miguel Cintra, A Cornucópia, em 1973, onde ficou até 1979. Seguiu então a sua vida e partiu de novo, desta vez para trabalhar com Jean Jourdheuil, em Paris, Peter Stein, em Berlim, e Giorgio Strehler, em Milão.
Outra vez de volta, anos mais tarde, fez sobretudo cinema – Ninguém Duas Vezes, Agosto, Coitado do Jorge são alguns dos seus filmes, a que acrescentaria documentários sobre Glicínia Quartin, António Palolo, Ângelo de Sousa, Nikias Skapinakis e outros artistas plásticos. Em 1995, lançou as bases de um novo projeto a partir da peça António, um Rapaz de Lisboa, que escreveu e estreou na Gulbenkian, com grande impacto. Nasciam os Artistas Unidos, com o “desígnio” de dar voz aos jovens atores e aos autores contemporâneos. E já lá vão 20 anos de persistência e “precariedade”, sempre a “fazer o teatro que gostaria de ver”.
Uma biografia apostada em ‘múltiplas’, feita de teatro, cinema e escrita, que agora Jorge Silva Melo revisita no filme Ainda não Acabámos. E ao fim de uma tarde de janeiro, já aliviada de chuva, no Jardim de Inverno do Teatro São Luiz, antes da exibição do seu filme sobre Álvaro Lapa, no ciclo a decorrer, o encenador e cineasta falou dos começos e dos fins e do que nunca acaba, o seu desejo de criação e de debate de ideias e a vontade de passar testemunho aos mais novos.
Isto ainda que sinta hoje amargamente que o que fez foi “inútil”. Uma palavra impiedosa, de quem lamenta ter agora “palavras de um náufrago”. É o que diz assim mesmo, sem meias palavras, nem suaves eufemismos, numa conversa de ver ao perto e ao longe. E foi justamente por essa amplitude de focagem que começou: é que Jorge Silva Melo ficara sem os seus óculos de ver ao perto. Nada que o impedisse de esmiuçar tudo até ao fundo, a ele que sempre viu longe. E se a questão não é evidentemente de óculos, a verdade é que eles, os prosaicos óculos, grandes e redondos, são um traço do rosto com que atravessou os tempos, da face que deu à cultura portuguesa: tão reconhecível como o riso rouco, o tom mordaz, rebelde, irredutível, rigorosamente lúcido e sempre finamente acutilante. Por qualquer lente que se observe. E sim, observa ele, os óculos que fazem a cara com que sempre enfrentou o mundo de caras, já não se fabricam exatamente iguais: meio milímetro a menos na imagem de um criador sem medida.
Jornal de Letras: A propósito de óculos, nem precisamos deles para ver a dimensão da sua imagem de criador e fazedor de cultura. Tem noção dessa importância?
Jorge Silva Melo: Não, porque estou cá dentro, da própria imagem. Às vezes até me surpreendo com as fotografias: “Ai, tão velho!”. (risos) Mas não me sinto o senhor respeitável e gordo que aparento para os outros. Consigo mexer-me bem nas letras, nas artes plásticas, no cinema e no teatro, o que me dá alguma individualidade. Mas começo a ressentir-me disso.
Em que sentido?
Já não me convidam para fazer projetos artísticos, mas sim para animar conferências.
Respeito pela experiência e pela sabedoria?
Como uma Lili Caneças da cultura fina (risos), só sou convidado para eventos. Não estou para isso, nem para os croquetes. Acabo por ser mais considerado como um homem que tem umas ideias meio malucas do que como um artista. Não estão interessados em que escreva ou encene. Nada disso. Mas participar em debates, isso sim. E são das coisas que mais me aborrecem.
Isso deve-se à falta de dinheiro para projetos ou reflete uma mudança de atitude em relação aos criadores mais velhos?
Há uma mudança de atitude mais ou menos generalizada. É-me reservado não ainda um jazigo no Cemitério dos Prazeres, mas um lugar de ‘has been’, de alguém que teve uma certa importância histórica, mas já está arrumado. Mas não me sinto assim tão velhinho e não me apetece terminar a vida numa reforma de conferencista. Gostava mais de ainda fazer uns tantos espetáculos que o Teatro da Politécnica, pelas suas características, não permite fazer. Mas não tenho acesso a teatros grandes.
Os AU acabam de apresentar o Doce Pássaro da Juventude no S. João.
Sim, mas por exemplo o projeto que tinha apresentado para 2017, no D. Maria, foi recusado. Deixei de ter essa margem de manobra para poder criar novos espetáculos. E a não ser no São Luiz, o resto está tudo a dizer “não, não, queremos jovens”.
Alguma ingratidão?
Quando era novo, também não queria ver os velhos, portanto é natural que me aconteça o mesmo… Mas nessa altura, acho que os velhos eram mais velhos do que sou. E é uma chatice, porque assim ainda estou a ocupar o lugar que os mais novos queriam ter… É o mal dos rapazes que tinham 20 anos em 68. Ou seja, 25 em 74. Estamos novos de mais. Não criámos família, não tivemos filhos, continuámos sem gravata.
Sente muito essa discriminação etária?
Sinto. Há dois. três anos, que ouço dizer ‘não’ a coisas que pensava que iam interessar. Os meus projetos artísticos não têm grande interesse para o poder atual. Quando muito querem a minha opinião para o legitimar. Sinto que o meu tempo de criação já acabou.
MEDITAÇÃO AUTOBIOGRÁFICA
Então, o seu filme Ainda não Acabámos é também uma provocação?
(risos) Pois. O filme foi uma ideia da Joana Cunha Ferreira, na altura em que eu trabalhava com a Midas. Já que eu tinha feito tantos retratos de artistas, ela desafiou-me a fazer o meu autorretrato.
E interessa-lhe o género?
Gosto realmente de autorretratos, de Rembrandt, de Picasso. Em filmes, não havia muitos. De repente surgiram alguns, de Manoel de Oliveira, de Agnès Varda, do Joaquim Pinto. Quando a Joana me perguntou há uns seis anos por que não o fazia, achei que era uma bela ideia. E escrevi logo um argumento.
A ideia foi filmar uma biografia de fora?
Nunca me filmar a mim. Não se tratava de fazer um filme como o Rembrandt pintava a sua cara, mas antes filmar o que via, o meu ponto de vista sobre as coisas, as pessoas que me marcaram. Mas as voltas que o mundo dá: às tantas comecei a enjoar-me com o que estava a fazer.
Porquê?
Não queria fazer psicanálise. Ainda fui a Paris falar com o Jean Jourdheuil, a Roma com o Spiro Scimone sobre a Titina Maselli, uma artista que me influenciou muito. Mas pensei que estava a fazer um filme sobre gente famosa que eu tinha conhecido e acabaria por ser uma série de lugares comuns, a mostrar-me importante. Parei quase um ano. Isso coincidiu com o momento em que os AU estiveram para sair do Teatro da Politécnica, há dois anos, e entristeci muito com a maneira como estava a ser tratado. Tivemos os apoios cortados a metade e foi preciso reduzir muito as nossas capacidades, os nossos vencimentos.
Ficaram mesmo sem receber ordenados?
Uns tempos. Agora já estamos a receber e com as dívidas pagas. Mas foi dramático. Não me apetecia fazer o filme para dizer que o país era ingrato, que o melhor era desistir. Mas acabei por fazê-lo.
Dedica-o a José Medeiros Ferreira. Porquê?
É uma homenagem, porque foi uma das pessoas que me marcou, quando era muito novinho. Aliás, entrevisto-o no filme. Numa coletânea sobre ele, que saiu depois da sua morte, João Gonçalves escreve um texto em que falava da última vez em que se encontraram, nos Açores, e tinham visto um filme e começado a discutir. Terminava dizendo: “Ainda não acabámos”. Achei muito bonito.
Por isso resolveu dar esse nome ao seu filme?
Pensei que era isso mesmo: nem eu ainda fiz tudo o que queria fazer, nem o João Pedro Mamede, o jovem ator com quem falo durante o filme. Ainda não está a mesa posta. É esse o sentido.
Ainda não Acabámos é uma carta a um jovem ator. Porquê?
A minha primeira ação política foi na Faculdade de Letras, tinha uns 19 anos, quando precisamente distribuí a carta de despedida do Medeiros Ferreira, antes de desertar e exilar-se na Suíça. Conhecia-o apenas de ouvir falar dele, das suas ações políticas, da prisão. Era um herói, tinha feito a histórica greve de 62, um pouco mais velho do que eu, que entrei para a faculdade em 1965. Essa carta fantástica, policopiada, chegou às minhas mãos através do Luís Salgado de Matos, para que a distribuísse clandestinamente ao fim da tarde, deixasse nas casas de banho e avisasse as pessoas. Foi o meu primeiro empenho político e marcou-me muito. Quis continuar essa forma de ‘carta’ no meu filme. Além disso, faço uma espécie de meditação autobiográfica.
Um autogolo?
(risos) Um auto qualquer coisa… Porque não é literalmente uma autobiografia. Não falo de todos os acontecimentos, de todas as cidades onde trabalhei e vivi, não conto a minha vida, do Liceu Camões até agora. Referencio algumas coisas, que foram importantes. E quando vejo o filme, acho-o um pouco triste. Parece que não estou a contar ao novo ator, com quem falo, nada de excitante, que o impulsione a viver a vida e o teatro. Acho, antes, que estou sempre a dizer: “Tem pena de mim, tem pena de mim…”
‘Coitado do Jorge’….
(risos) Olha, foi assim que me saiu…. Com uma comiseração que não reconheço em mim próprio.
Olhar para trás o que foi vivido é inevitavelmente nostálgico?
Tem nostalgia e a sensação de que perdemos. Recordo muitos amigos que morreram, colaboradores com quem trabalhei e cortei relações. É um filme muito mais magoado e dorido do que estava à espera de fazer, pessoal, íntimo, com algumas coisas sentimentais.
É uma passagem de testemunho?
É. O João Pedro Mamede encanta-me pela sua juventude e maturidade.
Estreou-se praticamente nos Artistas Unidos.
Antes de vir trabalhar connosco, esteve num grupo muito engraçado em Almada. E já tem projetos próprios.
Um deles, um novo grupo, Os Possessos.
Sim. Acho que não fui muito generoso com ele e a sua geração, talvez seja um erro do filme. Paciência. Já não há nada a fazer. Apesar do título, o filme já está acabado (risos).
DIÁLOGO DE CRIADORES
Não conversa com os mais novos?
Ah, não. A conversa com os mais novos atrai-me, estar ao lado deles em projetos comuns. Com o João Pedro Mamede, o Nuno Gonçalves Rodrigues, pessoas de 20 e poucos anos. Não porque lhes quero dar lições, mas para nos embrenharmos na mesma tarefa. A minha experiência com certeza serve-lhes para alguma coisa e a generosidade e inocência deles serve-me a mim, dá-me alguma frescura.
Esse diálogo geracional é uma das marcas distintivas dos AU, por onde passaram muitos jovens atores, alguns dos quais formaram depois os seus grupos.
Orgulho-me muito disso e de tanta gente ter saído com ideias próprias. O Bruno Bravo, por exemplo, que esteve lá dois anos, e depois criou os Primeiros Sintomas, o Manuel Wiborg, que teve duas companhias e está a retomar uma terceira. Aliás, uma das coisas que me levou a fazer os AU foi justamente não infantilizar os atores.
Infantilizar?
Os atores não são crianças a quem dizemos como se devem comportar à mesa. São pessoas responsáveis. Devem ter na sua mão os orçamentos, os planos de trabalho, saber como se concorre aos concursos da DGArtes ou da Gulbenkian. Por isso, gosto de ter atores nas bilheteiras para saberem como é esse serviço, perceberem por exemplo que dar convites não nos convém (risos). De partilhar esses saberes com eles, foi assim que aprendi. E esse foi um dos desígnios dos AU. Também por isso tenho hoje alguma amargura.
Porquê?
Por causa das várias reduções que fomos obrigados a fazer, da menorização do projeto que sofremos. Nunca mais voltaremos a ter tantas pessoas a trabalhar como no espaço d’A Capital.
Quantos são hoje?
Uns 15. Sobretudo não temos cinco projetos em criação ao mesmo tempo, como então acontecia. Agora temos dois, a custo três, mais ou menos todos dirigidos por mim. E mesmo neste ritmo, vai ser difícil continuarmos, porque os custos e encargos do Teatro da Politécnica são enormes e as condições físicas são graves. Chove lá dentro, é preciso remover todo o chão da sala principal, que está podre. Custa-me não ter à minha volta quatro, cinco grupos de atores com ânsia de fazerem espetáculos, num diálogo criativo, como era n’A Capital. Às quartas-feiras, todos íamos ver todos os espetáculos que estavam a ser ensaiados ou apresentados. E eram discutidos em conjunto. Esse diálogo natural com os criadores, como havia muitas vezes por exemplo com João Fiadeiro, não é mais possível. Cada um está na sua casinha a tratar dela com enormes dificuldades.
SÓ PARA PRIMOS
Pensa que há hoje um maior individualismo no teatro?
Somos convidados a tratar cada um das suas coisinhas e a apresentarmo-nos num regime de festa e de festival.
Que quer dizer com isso?
Neste momento, a hipótese é apresentar um espetáculo não durante um mês, mas dois ou três dias. Fazem-se uma espécie de festas de aniversário com teatro. E isto nos teatros institucionais, o que a meu ver contraria aquilo que é a sua missão.
E que é?
Entregar os espetáculos ao maior número possível de espetadores e contribuintes. E não fazê-los para os profissionais e aspirantes à profissão e respetivos namorados e namoradas, que é o que vemos a assistir nos dois dias ou três que estão em cena. É pouco. Acho mesmo que isso é desvirtuar completamente o teatro, transformando-o numa espécie de conferências.
E voltamos ao mesmo.
Pois é. Neste momento, o teatro está a ser o que as conferências eram no séc. XIX: um acontecimento mundano para 30, 40 pessoas, com palmas, com provocação ou não, mas sempre para uma elite da elite que ia dormir enquanto o conferencista falava…
Mas há um público de teatro, que enche as salas, uma conquista feita nas últimas décadas em parte pelos grupos independentes…
… E o que os teatros institucionais dizem hoje ao público é para não vir, porque agora é só para primos (risos). Mas os teatros nacionais e municipais devem ser para todos, jovens, velhos, intelectuais, não intelectuais. Os AU apresentaram por exemplo Doce Pássaro da Juventude no São Luiz, correu muito bem, com uma média de 260 espetadores, e vai ser reposto. Também no S. João, teve uma média de 300 espetadores. Mas Gata em Telhado de Zinco Quente, que fez uma enorme digressão pelo país, foi apresentada apenas seis dias no Centro Cultural de Belém. Certamente muitas pessoas queriam ver mas não conseguiram. É dramático e insultuoso para os atores, que trabalharam dois meses a ensaiar, para meia dúzia de representações. Claro que depois fizemos dois dias em Viseu, por exemplo, com o teatro cheio, ou em Coimbra, mas proporcionalmente foi mais do que no CCB. Por isso, quando digo que vou estrear um espetáculo dia tal, muitas pessoas já perguntam logo quando iremos repor… (risos). Felizmente que, como tem quase o mesmo elenco do Doce Pássaro, também poderemos repor a Gata. Como se tivesse uma companhia, com contratos fixos com atores. Só que cada vez podemos ter menos.
Quantos atores estão fixos nos AU?
Nove, mas já chegaram a ser 20. Os outros são contratados à peça, o que faz com que muitos recusem trabalhos por não terem uma continuidade, mais do que por questões de dinheiro. Daqui a pouco, não poderei ter atores a trabalhar connosco com regularidade, na casa dos 35, 45 anos, apenas muito novos, que são baratos e não se preocupam ainda com a estabilidade, ou já muito velhos, que já não têm essa necessidade. O que me cria um grande problema.
Qual?
Tenho que trabalhar com mão-de-obra barata, sim, mas não quero embaratecer ainda mais o preço dos trabalhadores.
AUGE DA INTERPRETAÇÃO
A situação parece contraditória, já que existem mais espaços teatrais no país e mais pessoas a fazer teatro.
Mas é reduzido o panorama e as propostas estão a ficar demasiado parecidas. A maior parte dos espetáculos que tenho visto, bons ou maus, tem a mesma ambição: ser uma espécie de grito, mais ou menos informe, contra o mal-estar da sociedade. Quase todos iguais: à boca de cena, com os atores não fazendo as personagens, mas declarando a intenção de as fazer. Às vezes têm graça, são bem feitos, mas pouco interessantes do ponto de vista teatral. Aconteceu o mesmo na dança, depois da geração do João Fiadeiro e da Vera Mantero, em que parecia ser apresentado sempre o mesmo espetáculo: Tiravam as calças, tiravam as calças, tiravam as calças… (risos) A sensação era de já ter visto aquilo. Agora, no teatro, está a acontecer algo parecido com essa decadência – isto embora os intérpretes sejam cada vez melhores. Ou seja, neste momento, há intérpretes sublimes, com uma enorme capacidade de registo, de entrega, de potência, de disponibilidade. Como nunca houve em Portugal. E não só os muito jovens. Aliás, até falo muitas vezes
disso com a Lia Gama, que também acha extraordinário como aparecem tantos atores bons. Mas as propostas estéticas em que entram nem sempre estão à sua altura.
Porquê?
Muitas vezes são puramente dogmáticas, ensaiadas provisoriamente ou de uma maneira um pouco amadorística e sobretudo cópias de outros espetáculos que se vão vendo por aí.
Há excelência de atores, mas falta de encenadores?
De criação. Enquanto a interpretação está num auge, o que se nota até na televisão, a conceção, a ideia, a vontade, não correspondem.
Falta um sentido novo?
Uma responsabilidade ou uma identidade. Tenho muito carinho pelos Possessos, por exemplo, que vi nascer e onde há qualquer coisa de muito frágil e novo. Mas ainda só fizeram dois espetáculos. E até ao segundo está-se sempre em estado de graça. Como os 40 dias de graça dos governos e dos presidentes da República…
Aconteceu isso nos AU?
Um pouco. O primeiro espetáculo que fizemos foi António, um Rapaz de Lisboa, a seguir O Fim ou Tende Misericórdia de Nós, em que já houve uma redução de elenco e também no entusiasmo com que foi recebido. Mas eu já não era um principiante nos AU.
N’A Cornucópia, foi diferente?
O segundo espetáculo d’A Cornucópia foi o meu primeiro, um Marivaux, e também muitíssimo menos bem recebido.
Foi muito marcante?
Não era o espetáculo que queria ter feito, A Estalajadeira, de Goldoni.
Que fez há pouco tempo nos AU.
Sim, já velhote. Mas na altura não tinha a atriz que queria e acabei por fazer outra peça de acordo com o elenco. Acontece muitas vezes. Recentemente, por exemplo, fiz a Gata antes do Doce Pássaro, ao contrário do que tinha pensado, porque a Maria João Luís não estava disponível.
Vai fechar o ciclo dedicado a Tennessee Williams com A Noite da Iguana?
Sim, mas só estreará em janeiro de 2017. É uma das peças mais estranhas e enigmáticas do Tennessee Williams. Maria João Luís, Joana Bárcia, Marco Delgado e Américo Silva vão ser os protagonistas. E é engraçado estrear no São Luiz, onde vi o filme do John Houston feito a partir dessa peça…
O CINEMA POR PERTO
O cinema e o teatro são sempre vasos comunicantes na sua criação?
Sempre. São coisas que estão muito próximas, porque trata-se de representar a vida. Nunca fui muito tentado pelos grandes textos ultra-românticos, que na verdade estão no oposto do cinema, que nasce do realismo. Naturalmente esse é o meu repertório. Interessam-me mais os textos do Ibsen para a frente. Mesmo quando gosto de coisas muito excessivas, como Enda Walsh, que considero um dos maiores autores vivos, a verdade é que ele é filho do cinema rasca, popular, do pub inglês, irlandês, no caso, do divertimento proletário da cervejola e das grandes bebedeiras. O cinema está sempre perto. E é engraçado que uma das peças que vamos fazer a seguir, ainda este ano, em setembro, na Politécnica, O Rio, é de um autor, que creio nunca ter sido representado em Portugal, Jez Butterworth. E imagine-se que agora é o argumentista do James Bond… Foi um sarilho negociar os direitos… Ele ficou muito espantado: “O quê? Um teatro de 70 lugares?” (risos).
Ficou melindrado?
Pois, é um argumentista importante, amigo de Sam Mendes, que tem encenado as suas peças. Foi difícil convencer os agentes, que queriam que estreássemos em salas grandes. Ainda fizemos a proposta a umas quatro, mas consideraram que não era interessante. E, no entanto, a peça é uma pequena obra-prima.
Começou aliás pelo cinema, a fazer crítica, ainda muito jovem.
Tinha uns 14 anos. Escrevi primeiro no juvenil do Diário de Lisboa e, logo a seguir, n’O Tempo e o Modo.
Foi como crítico que conheceu Tati quando ele esteve em Lisboa?
Aí, já escrevia para A Capital e foi para lá que o entrevistei, em1968. Nesse período, era muito marcado pela clareza e simplicidade do Hawks, pela malícia e perversidade de Hitchcock ou pelo esfusiante cinema do Minnelli. Eram as minhas paixões. A nouvelle vague não chegava cá completamente. Os Godards eram proibidos, mas a Lola, de Jacques Demy vi umas 20 vezes por vários cinemas de bairro. E depois o cinema italiano pós-neorrealista: A Rapariga da Mala, do Zurlini, o Verão Violento, eram os filmes que amava e que ainda amo.
E o que o levou ao teatro, na faculdade?
Queria estar com pessoas. Tinha estudado num colégio religioso muito chato, antes de ir para o Camões, onde tive colegas como Miguel Lobo Antunes, José Mariano Gago. Depois, na faculdade, não me apetecia ficar sentado no anfiteatro a ouvir os professores. Descobrimos que havia um grupo de teatro e começámos a fazer. A certa altura, não quisemos mais os professores a dirigirem e aos 19 anos, o Luís Miguel Cintra encenou o seu primeiro espetáculo, O Anfitrião. Correu muito bem. Foi a base para se criar uma companhia, A Cornucópia, e por aí fora.
O que os motivou para tão grande desafio?
Fazer um refrescamento dos clássicos. Em Portugal, não estavam a ser feitos e queríamos que esse reportório humanista voltasse à cena. Quando veio o 25 de Abril, interessou-nos Brecht e os autores que punham em causa a sociedade burguesa, uma espécie de análise crítica da História. Iam nesse sentido quer O Misantropo, encenado pelo Luís Miguel, quer a minha Ilha dos Escravos.
QUEM FOI AO MAR…
E, há 20 anos, fundou os AU.
A certa altura descobri o Manuel Wiborg e a Joana Bárcia, quando fiz o filme Coitado do Jorge. Pensei que não podia deixar aqueles jovens tão talentosos e disponíveis sozinhos, que os devia proteger, não deixar que se atirassem logo para as telenovelas. Foi daí que nasceu a vontade dos Artistas Unidos e de fazer espetáculos em co-autoria com os atores.
O início de um caminho sempre precário, com várias moradas, do espaço A Capital ao atual Teatro Taborda.
Há uma companhia de mudanças que se chama Transportes Unidos. Nós não somos sócios… (risos) Mas andámos sempre em mudanças. Na verdade, fui ao mar, perdi o lugar. Todas as pessoas da minha idade que fazem teatro ficaram com salas próprias, o Luís Miguel, o João Lourenço… Eu tive que forçar.
Entretanto, praticamente deixou de ser ator. Não o lamenta?
Na verdade, nunca o quis ser, mas estar na organização dos espetáculos. Fui ator n’A Cornucópia, porque era preciso. Depois em França e nos AU apenas numa substituição do Camacho Costa e no Pinter, porque queria estar ao lado do João Perry em cena. Era uma ambição de juventude.
E escrever teatro?
Isso gostaria. Mas quando se dirige uma companhia, tem-se pouco tempo. Tinha o projeto de escrever uma peça para este ano, mas não vou conseguir. A alteração de planos tem sido tão constante, a falta de resposta das instituições…
Com o novo Ministério da Cultura não mudou nada?
Não, até ao momento não se sente nenhuma mudança, nem no teatro, nem no cinema.
No cinema, não tem projetos de longas metragens, de ficção?
Não. Há cinco anos que a minha vida é só os AU. Não tenho tempo para pensar no cinema. Nem sei se ainda teria forças para toda a exigência de fazer um filme.
Mas gostava?
Imenso. Gostei muito de fazer todos os meus filmes. Ao mesmo tempo, o circuito de distribuição é-me distante. Todos eles correram mal em sala e isso magoa-me. E desinteressa-me. Gosto que as pessoas vejam o que faço. Mesmo António, um Rapaz de Lisboa, que tinha corrido muito bem no teatro, como filme foi bem recebido pela crítica, mas os espetadores não quiseram ver. A situação em que está o cinema português, apesar dos esforços do Paulo Branco, por um lado, do Pedro Borges por outro, entristece-me. Acaba por ser uma coisa para festivais e isso não me interessa.
Porquê?
Já não posso com tanto festival. E agora até de literatura, o que não lembra ao Diabo (risos). Livros são para ler, em casa. Gosto do teatro, do cinema, da literatura como atividades quotidianas. Não por festa, nem como missa, só aos domingos (risos).
QUARTETO REVISITADO
Depois de Quarteto, em cena na Politécnica, vão fazer mais Heiner Müller este ano?
Em novembro, vamos estrear Hamlet Machine. Conseguimos os direitos de edição do Heiner Müller para os livrinhos dos AU.
A coleção de textos de teatro?
Quase nos 100 livros, muitos com duas peças. É fantástico.
Qual será o número 100?
A Morte de um Caixeiro-Viajante. E acho que o Quarteto vai esgotar, porque as pessoas têm comprado. Quando há dois anos estava a rever as provas, pensei que era uma bela ideia voltar a fazer essa peça, que tinha feito em 1988. Há 20 anos que Heiner morreu e faz-me impressão que tenha ficado esquecido. Foi muito representado em todo o mundo a seguir à sua morte e depois foram-no abandonando. Começou a entrar mais o hiper-realismo americano e britânico e esqueceu-se a sua poesia demoníaca.
Foi amigo dele?
Sim. Estreei uma peça dele, a Estrada dos Tanques, sobre a grande avenida que sai de Berlim e vai até Moscovo, em Paris, com encenação do Jean Jourdheuil. Mas fomos amigos desde 1977. Encontrámo-nos em Paris, Roma, Berlim, com muita regularidade. E apeteceu-me voltar a fazer o Quarteto, num contexto completamente diferente. Curiosamente, também quando o Hamlet Machine foi escrito, previa-se a queda do muro de Berlim e agora o que se prevê é mesmo a queda da Europa. Aquela primeira frase da peça, “Atrás de mim, as ruínas da Europa”, tem hoje outro sentido. Na altura era a vitória da Europa sobre o comunismo, agora é a derrota da Europa perante nada.
Foi estimulante voltar a Quarteto?
Sim. Parto sempre de duas realidades que tenho de juntar: o texto e os atores. Portanto, da intuição, da leitura que os atores trazem para o texto. Ivo Canelas, com quem tenho uma grande cumplicidade e com quem não trabalhava há 15 anos, fez-me ver o Quarteto de uma outra maneira.
ATOR E RETRATISTA
Nos últimos anos, fez uma série de documentários sobre artistas plásticos.
Sou essencialmente curioso. Na verdade, não pensei fazer filmes sobre artistas e já fiz dez. Tudo partiu de um convite da Yvette Centeno, quando era diretora do ACARTE da Gulbenkian, para fazer um filme sobre o Palolo. Gostei tanto de o fazer, que depois veio Joaquim Bravo, Álvaro Lapa, Nikias Skapinakis, António Sena, José de Guimarães. Foram-se encadeando. Ainda estou a concluir um outro sobre Sofia Areal, que vai ser completamente diferente.
Porquê?
Porque estou a filmar alguém que está ainda a fazer, a Sofia a pôr encarnado ou preto, a traçar riscos. E uma artista mais nova do que eu, a registar o presente e o futuro que promete.
Mas tem uma relação especial enquanto cineasta com o universo das artes?
A ideia de que tenho à frente uma personagem e 60 minutos para fazer o seu retrato, está entre o jornalista e o cineasta. Uns são mais meus, como o do Lapa ou do Nikias, porque a história que vai contando com a sua pintura é a da minha juventude. Outros serão mais afastados. Depende muito. Mas gosto sempre de apanhar a tonalidade do retratado. E é também trabalho de ator.
Em que medida?
Estou ali a representar, a tentar fazer nascer uma personagem.
Nunca teve a curiosidade de pintar?
Não. Graças a Deus… (risos) Mas desde muito cedo, a minha irmã, mais velha do que eu 12 anos, levava-me muito a museus, a ver pintura. E lá em casa havia muitos livros de arte que ia folheando com avidez. Fui crescendo com arte por perto. Quando entrei para a faculdade, no meu caminho passava pela 111. Ao pé do Liceu Camões, havia a livraria Divulgação, dirigida pelo Bruno da Ponte, onde também vi exposições. Aliás, nessa altura, era nas livrarias que se faziam. Se calhar é por isso que gosto de ter exposições no Teatro da Politécnica, que não sendo uma galeria, permite nuns minutos antes ou depois do espetáculo, descobrir alguns artistas.
Em Ainda não Acabámos revisita a Lisboa da sua infância e juventude.
Comecei a ir ver filmes e a comprar livros muito cedo. A cidade era sobretudo para mim a distância que ia entre a minha casa e os cinemas, qual o autocarro que ia até ao Avis, o elétrico que passava no Chiado Terrace. Ao mesmo tempo, foi a descoberta da política, da importância da liberdade. Agora venho ao São Luiz e já não me sinto na minha cidade.
Porquê?
A vida quotidiana desapareceu. Só há a vida turística, das montras, dos saldos. Sinto a Baixa tão vazia, já não me lembro de lá marcar um encontro. Combino tudo para cima do Rato.
OFICINA RENASCENTISTA
Também fala no seu filme dos seus mestres. Foram determinantes nas suas escolhas?
Tive a sorte de ter sido aluno, aos 15 anos, de Mário Dionísio, de João Bénard da Costa, que já conhecia de casa, porque era amigo da minha irmã. Depois, na faculdade, havia o extraordinário padre Manuel Antunes. Tive-o como professor no primeiro ano e passei, mas gostei tanto das suas aulas que voltei no ano seguinte.
Teve igualmente grandes mestres do teatro.
Fui assistente do Peter Stein, do Giorgio Strehler, do Patrice Chéreau. E foi um privilégio ver esses grandes mestres a trabalhar. Hoje, as coisas já não se passam assim, mas gosto muito da oficina renascentista.
Da relação mestre-discípulo?
Mais do que a ideia da escola, do professor, gosto de ver um homem mais velho planear um quadro, e outros mais novos fazerem o céu, os passarinhos, construindo o quadro do velhote, que já não está para pintar tudo. Gostava de envelhecer assim: já só me ocupar da figura principal e ter muita gente ao meu lado a fazer as nuvens, os ventos, as plantas…
Um trabalho de equipa?
É um ideal de vida. O teatro tem muito de oficina renascentista, em que todos são responsáveis pelo resultado final e cada um sabe uma coisa que o outro não sabe.
Disse no início da conversa, que ainda tinha muito que queria fazer…
Sobretudo deixar ficar uma estrutura bem organizada que permitisse aos mais novos continuarem. Os instrumentos, os espetadores e um país que se interessassem pelo que têm a dizer. E ajudá-los a formar a voz deles. Acho que já não vou ter tempo para isso. E faz-me pena que não tenha sido possível nos anos a que me dediquei a estas tarefas construir uma coisa mais sólida e… menos inútil.
Inútil não será uma palavra excessiva?
Não. 90% das coisas que fiz e ando a fazer são inúteis. E isso custa-me, porque não sei fazer outras.
Inúteis, porquê?
Porque não vão ter continuidade, caíram nos ouvidos de um surdo. Não há atmosfera que permita que respirem, que ecoem, estão contra a corrente, mas não têm a força suficiente. São palavras de um náufrago. Por isso, Ainda não Acabámos é triste. Como digo no filme, ninguém está interessado numa “arte sem remorsos, nem culpa”, uma arte autêntica que eu gostava que existisse.
Sinal do tempo que vivemos?
Com certeza. Porque vários amigos meus em França e Itália se queixam da mesma apatia. Mas é particularmente violenta aqui. Dói-me imenso que muitas pessoas que foram formadas nos AU nunca tenham posto os pés no Teatro da Politécnica. Descobriram outro mundo. Uma das dores que levo desta vida é que me estejam a dizer que estou velho, académico.
Tem medo de envelhecer?
Assusta-me ser resingão. Acima de tudo não ter interlocutores. Posso estar errado, antiquado ao fazer Tennessee Williams ou Heiner Müller. Mas gostava de discutir isso com alguém. O teatro não se faz sem debate, confronto, luta. Foi isso que desapareceu. Já estou só num pedestal, a dar continuidade ao meu lugar histórico no teatro português. Isso faz-me doer. Às vezes, estou sozinho em casa, à noite, e pergunto-me o que estou a fazer aqui se ninguém me responde?