De Amália a Marceneiro, do folclore de Idanha-a-Nova a temas da sua autoria. Aquela que é uma das mais internacionais vozes portuguesas está de volta com Perfil, um disco de estúdio, que reflete a sua essência
Perfil, normalmente, é um título dado a coletâneas. Mas não se deixe aqui o leitor e ouvinte enganar. Este é mesmo um novo álbum de estúdio de Dulce Pontes, cinco anos depois do duplo Peregrinação. E se tem o título pode provocar algum equívoco é porque o disco desenha as linhas mais marcantes da autora e intérprete, sobretudo aquelas que traçam a sua relação com a música portuguesa. Estão aqui representados o que Dulce considera os seus quatro pilares do fado: Amália Rodrigues, Hermínia Silva, Alfredo Marceneiro e Fernando Maurício. Também está o folclore, em “Laranjinha”, tema tradicional de Idanha-a-Nova que a mãe lhe costumava cantar em criança. Há um tributo indireto a Ennio Morricone, em “Amapola”, música que o grande compositor gravou, mas na verdade é da autoria de José María Lacalle García. Tem momentos surpreendentes, como o extraordinário dueto com Ricardo Ribeiro, em “Valsa da Libertação”, sobre poema de David Mourão-Ferreira, ou o fado de sete minutos, “Lenda das Algas”, pertencente ao reportório de Celeste Rodrigues. Ou ainda “Na Língua das Canções”, a abertura do disco e um dos singles, com música da própria Dulce e letra de Tiago Torres da Silva.
Nascida no Montijo, em 1969, Dulce Pontes estudou música e dança, e começou no teatro musical. Contudo o seu nome só passou a ser conhecido pela maioria dos portugueses quando, em 1991 ganhou o festival da canção com o tema “Lusitana Paixão”. No ano seguinte, gravou o seu primeiro álbum , Lusitana, ainda muito ligado à música ligeira. Foi em 1993, com Lágrimas, próximo do fado, que encontrou a sua voz e se lançou definitivamente numa carreira internacional, seguindo os caminhos deixados abertos por Amália e os trilhos dos Madredeus. Chamaram-lhe mesmo a nova Amália, título que sempre recusou. De resto, a sua identidade musical sempre se fez de diferentes influências e latitudes. O fado está normalmente presente. Mas também há importantes trabalhos sobre o folclore, com destaque para Primeiro Canto, ou sobre músicas do mundo, com especial predileção sobre a música latina, do tango ao flamenco.
Já fez extensíssimas digressões internacionais, atuando em salas de relevo um pouco por todo o mundo. Um dos momentos de maior reconhecimento e projeção foi, sem dúvida, a gravação de Focus, com o compositor italiano Ennio Morricone. Perfil é o seu nono álbum, sucedendo aos duplos O Coração Tem Três Portas (2006)e Peregrinação (2017).
JL: Perfil é um título que normalmente se dá a coletâneas, porque escolheste este nome para o novo álbum de estúdio?
Dulce Pontes: Porque me representa enquanto portuguesa. É uma soma das várias influências ao longo do tempo. Tem fado, folclore… também alguns temas originais. Um cariz muito meu. Estava para ser Retrato, mas acabou por ficar Perfil.
O teu percurso não se faz apenas de música portuguesa, mas este é um dos mais portugueses dos teus álbuns. Não concordas?
Estão aqui os quatro pilares do fado: Amália, Hermínia Silva, Alfredo Marceneiro e Fernando Maurício. Onde existe uma escolha poética adequada, por exemplo com o Porque, da Sophia de Mello Breyner… O fado para mim faz sentido a partir do momento em que tem aquela poesia profunda e intensa. E a primeira pessoa a dar isso ao fado foi a Amália. Inspiro-me nos mestres, e a partir daí acrescento a minha sensibilidade e forma de sentir.
Cantas a “Soledad” que é um tema que a Amália nunca gravou em estúdio…
Há uma gravação ao vivo, no Coliseu, em 1987. É pena não existir o registo em estúdio. Assistimos àquele ensaio com o Alain Oulman que é brutal. A forma como ela tão timidamente, mas ao mesmo tempo enorme, com que recebe o tema. Adoro ver aquela cumplicidade e testemunhar estes momentos são mágicos. Aqueles temas foram considerados não fados, mas são lindíssimos e com uma profundidade e estrutura completamente diferentes.
Qual foi a tua preocupação na construção do disco? Delineaste um conceito?
Por muito que se pense que existe um guia, um plano, há sempre transformações. Por vezes, porque os temas não são exatamente aquilo que estávamos à espera. A grande maioria foi gravado ao vivo em estúdio. Os fados precisam dessa realidade. Não se pode repetir um fado mais de duas vezes por dia, senão gasta-se. Houve também coisas que fui mudando ao longo do caminho porque não queria que o disco ficasse pesadão. O equilíbrio foi acontecendo, com temas como a “Laranjinha”, de Idanha-a-Nova, o “Retrato”, com o violoncelo do Davide Zaccaria ou o dueto com o Ricardo Ribeiro., Quando dei conta tinha 11 temas… Achava que era pouco, porque tenho feito sempre álbuns duplos. Mas a verdade é que este é o tamanho normal de um álbum.
Foi por quereres fazer um álbum menos pesado que chamaste Yelsy Heredia, um músico cubano, para te ajudar na produção do disco?
Não, na verdade não teve nada a ver. A ideia seria produzir, mas coproduziu porque aquilo não estava a resultar da forma que eu esperava. São culturas diferentes. Apesar de ter tentado transmitir tudo e mais alguma coisa, ele não conseguiu entrar na lógica e no espírito do fado. É uma cultura diferente.
O disco inclui vários temas da tua autoria. Como funciona o processo de escrita?
Foi através do piano que comecei a compor, ainda antes de pensar em cantar. Depois demorei algum tempo a conciliar a cantora com a compositora, porque não gostava uma da outra… Até que o Fernando Pessoa resolveu o assunto. Queria muito cantar “O Infante”, e um dia, estava em casa a ler o poema e descobri que a métrica do encaixava perfeitamente numa música que tinha composto um mês antes. Até lá achava que só sabia compor temas instrumentais.
O disco começa com uma música tua, com letra do Tiago Torres da Silva, que faz agora 30 anos de letrista. Neste caso concreto como se passou?
Foi fácil porque foi o Tiago. Coitadinho, foi à queima-roupa. Enviei-lhe o tema 15 dias antes, se tanto. É coisa que não se faz. Ele ouviu e disse-me que a música tinha a letra lá dentro. Eu respondi-lhe: “Ainda bem que a ouves, porque eu não ouço nem uma palavrinha”. Ele foi fantástico. A canção só nasce depois de ter o poema.
E porquê “Amapola”, o primeiro single?
Eu pensava que era do Ennio Morricone, porque estava no primeiro disco dele. Sempre gostei daquela melodia. E achei que era uma forma de o homenagear. Comecei a escrever uma adaptação da letra. E só depois me apercebi que a música afinal era do Lacalle.
E A Lenda das Algas?
Vem na sequência da memória da minha mãe a cantá-la. Depois fui descobrir uma parte do poema que a dona Celeste Rodrigues não usou e acrescentei. Nem me apercebi que estava a gravar um fado de sete minutos. Foi lindo ver a expressão dos olhos da minha mãe a viajar no tempo.
E depois há “O fado mal falado”, que é sempre um momento divertido, que desanuvia…
Existe essa referência à Hermínia Silva. Por um triz ia ficando de fora, porque não tinha a certeza se estava bem. É difícil manter ali a Hermínia e reportar à minha maneira. Há uma postura teatral que existe ali e me assenta, porque foi no teatro musical que comecei.
Terminas com “Dulce Caravela”, o único tema com letra tua.
Compus para a Katia Guerreiro. Foi ela que lhe deuo nome. Sempre tive um carinho enorme pela canção, a melodia e aquelas palavras que são muito íntimas. E foi mágico o momento da gravação. Foi uma coisa muito densa que ficou mais leve. Um fonograma deve conter as coisas de forma rigorosa, mas sobretudo autêntica e com alma, de modo a que as pessoas possam sentir emoções, perceber que aquilo também as narra e as completa.
Este álbum demorou cinco anos a sair. O que fizeste neste tempo? Vamos ter que esperar outros cinco?
Há dois anos que não contam por causa da pandemia… Mas tenho sempre vários projetos na cabeça. Por isso é que estou deprimida por estar quase a fazer anos, porque depois só me faltam sete para chegar aos 60. A partir do momento em que reatei com a Universal e me deram liberdade e apoio, naturalmente que pensei logo em muitas coisas… A primeira ideia foi um álbum de homenagem a Elis Regina, que havemos de fazer a seguir. Mas depois resolvi ir por aqui.
Vais parar aos 60? Quando ouvimos a Maria Bethânia apercebemo-nos que se pode cantar muito bem para além dessa idade…
É que também gostava de ter um tempinho para ficar sossegandinha (risos). Mas se calhar não vai acontecer, logo se vê. O que não gostaria era de cantar já sem ter as faculdades. Causar aquela tristeza nas pessoas de pensarem que estou acabadinha. Acho isso horrível. Além disso, sempre pensei num ritmo diferente. Em que também possa ensinar, a nível interpretativo. Sem tantas viagens e sem tanta correria. Pode ser até aos 70… o problema é que depois já não consigo ir à horta.