A publicação de 50 Anos de Poesia – antologia pessoal, constitui um bom motivo para pensarmos sobre o lugar de Nuno Júdice (NJ) neste meio século da nossa literatura. Uma antologia pessoal implica, como é natural, uma criteriosa escolha e uma não menos criteriosa afirmação autoral. A assinatura, o poder do auctor actua em toda a sua extensão e, no caso concreto de NJ, relê-lo a partir desta escolha e afirmação é ponderar, ou melhor, pensar o lugar de certa poesia em 50 anos de ela se publicar, ler e criticar por diversas gerações de leitores e ao longo de três épocas históricas que determinam também as razões de certos poemas para este livro e não outros.
É que, se a poesia de NJ surge, em 1972, na célebre coleção dos ‘Cadernos Dom Quixote’, no momento em que o regime de Salazar/Caetano agonizava, a verdade também é que ela atravessa pelo menos cinco grandes ciclos do discurso poético português e, atravessando-os, com nenhum deles se compromete, mantendo-se absolutamente fiel a esse programa inicial, enunciado em A Noção de Poema: o apogeu da gramática. Escrevia o poeta: “Iniciarei pois um canto requisidor ao alcance do século./ Palavra, solicitação aventureira da exigência, desordem curva do erro!”.
Com efeito, se olharmos para o momento em que Júdice inicia esse programa de fazer de cada livro a instauração de uma gramática a todo o momento questionante dos próprios processos do seu fazer, veremos que:
1. A palavra poética judiciana afasta-se do textualismo vindo dos anos 60, em especial da noção de ‘surrealismo vigilante’ que anima muita da produção de Poesia 61 e de autores que, em clave irónica-realista (Armando Silva Carvalho) ou imaginante-torrencial (Ruy Belo e Herberto Helder), preferindo uma construção que, sendo narrativa, muito deve às lições do Campos futurista e, muito em especial, às lições dos romantismos inglês e francês. Muitas das suas imperativas injunções, imagens retiradas dum ambiente onírico e de uma paisagem onde êxtase e ominoso se conjugam, sem esquecer vocativos e uma presença clara de um ‘eu’ que exerce todo o seu poder auto-bio-gráfico, reenviam a interrogação da paisagem para o enigma da poesia que todo o Romantismo questionou.
A provocação gramatical integra, assim, o triunfo da poesia sobre o real, exibindo em poemas-história não o mecanismo textualista, sintático, de autores como Gastão Cruz ou Luiza Neto Jorge, mas antes os mecanismos românticos de uma linguagem agressivamente efabulatória (“Só, como se fosse a primeira vez, eu trabalho a página, de um lado ao outro em branco. Todas as possibilidades de a ordenar, a sua própria cor em pleno coração do verso (repeti em voz alta: a sua própria cor, etc., e as duas vozes juntavam-se sem se sobreporem […] embora eu procurasse a unidade, o Único!”) (p.17).
2.A poesia de NJ igualmente se mantém distante do injuntivo «regresso ao real” que os poetas de Cartuxo (1976), em especial Joaquim Manuel Magalhães, quiseram edificar como única via para purificar a poesia daquele excesso de metapoesia com que condenavam o suposto ornamentalismo de algumas vozes de Poesia 61. Quando, em 1976, publica, em Nos Braços da Exígua Luz, um poema, que nesta antologia comparece, «Sob o tampo do poema”, o efeito do realismo não se traduz na procura de uma palavra literalizada, ou desmetaforizada. Júdice, um atento leitor e divulgador dos Modernismos e do Surrealismo procura explicitar – nas cenas da escrita (e é a cena da escrita um dos motivos mais constantes desta obra) – as condições de possibilidade de uma palavra ameaçada em tempo de irrupção de uma estética que, sabemo-lo hoje, acabou por abrir espaço a uma poesia da experiência que nada tem de experiência da poesia.
Ora, ao ao escrever o referido poema programático, o que vemos é a suspeita de que a palavra poética já só pode balbuciar a sua voz, mas isso não anula o grau imaginante em que esse emudecimento se diz: “O trabalho de segurar/ a caneta sobre o papel gastara-lhe a pele. Levantou-as/ à altura dos olhos e, através delas, viu o escuro traçado/ do horizonte. Ficou assim; foi assim que o encontraram/ os vorazes animais da morte. Mas a boca mexeu-se ainda/ durante dias e noites sucessivas: ‘Poesia…Poesia’” (p.32).
3.Imaginação e efabulação, junção do que, vindo de Campos e de Herberto, de certo Kavafis e de Ginbsberg, de Eliot e de Pound, de Nobre e daquele prosaísmo que nasce dum certo Casais Monteiro (o de Europa), se soma às conquistas prosódicas de um José Gomes Ferreira ou de um Edmundo de Bettencourt, de muita Irene Lisboa (sempre me pareceu que NJ podia reclamar para si a conhecida charge da autora de Outono Havias de Vir: ao verso chamaremos verso e ao que nos parecer prosa chamaremos prosa).
Júdice é independente também em relação ao que nos anos de 1980 vemos acontecer: a edificação de uma poética que parodia a poesia, que a desmonta pelo lado mais sardónico da expressão, reduzindo-a a um discurso da banalidade, sem aposta propositada em qualquer retórica, a não ser a retórica da antirretórica (Adília Lopes é o exemplo máximo desse parodismo pseudo-sério do poético, com fundo tragicómico). Mas o autor de Lira de Líquen (1986) também não alinha na expressão mais carnalizada do poema, isto é, naquilo que, fruto do pós-25 de Abril, é a declaração do tema do corpo, ou do sexo, em todas as suas valências, com isso sexualizando a própria expressão literária.
Não vemos aqui a intromissão dum léxico erótico ou mesmo assumidamente pornográfico, quando um levantamento lexical das mais importantes vozes da década de 1980 provaria serem as questões da libertação sexual e as aventuras noturnas dum corpo agora livre para viver, temas e motivos que encontramos em quase todos. Também não vemos a prática dum realismo ácido, como em Al Berto ou em Luís Miguel Nava, em Fátima Maldonado ou mesmo em poetas vindos de outras gerações do século XX (Eugénio ou o último Sena), e que se torna libertador.
É a morte, sem as hipérboles e as enumerações dos livros dos anos 70, é a sensação de que a imagem encontra agora um regime ncturno (como bem viu Teresa Almeida) que justifica o poema como operação de mergulho numa contenção meditativa (leiam-se, nesta antologia, poemas como “Sim, Fui um Profeta”, “Sobre os Amantes Anónimos do Pére Lachaise”, “Setembro” ou “A Imagem do Vento”) que faz sobressair do noturno a mulher como tema associado à procura de uma iluminação. Mas é ainda o poema e a sua reificação que NJ persegue obsessivamente (magnífica expressão dessa procura da concretude do objeto-poema é “Génese” (p. 48).
4.O poema será, nos anos 90, esse espaço onde acontece a metamorfose constante do literal em figurado, do figurado em literal, do noturno em diurno, do diurno em noturno, operando-se ao nível da descrição e da hipotipose. É uma quarta característica que singulariza a arte de NJ. De Enumeração das Sombras (1989) à cúpula mais esplêndida do seu edifício poético, feita desses três insuperáveis livros que são As Regras da Perspetiva (1990), Um Canto na Espessura do Tempo (1992) e Meditação sobre Ruínas (1995), onde literatura, pintura, música, História, filosofia se cruzam num discurso atento aos efeitos narrativo-descritivos, mas atento também aos modos como a melancolia autoriza um canto polifónico, como se as vozes vindas da infância e do mundo pudessem apaziguar o presente absurdo que o poeta observa.
A passagem das estações, a verificação dos efeitos microscópicos sobre o humano e a natureza, o culto de um discurso teatralizado, muitas vezes como se o poeta fosse o narrador de flashes, de epifanias, ou um pintor que dá contorno à visões (“Encosta-se à parede. A brancura/ das pernas contra o negro da sombra. O/ risco da meia no risco do papel; e/ os dedos furam a pele. Os olhos/ fechados no excesso da luz. […]” (p.63) e lhes dá voz isolam esta poesia das três maiores vozes da poesia surgida na década de 90: Manuel Gusmão, Fernando Pinto do Amaral e Luís Quintais. Não há, apesar da meditação sobre a poesia como cena da escrita, o entendimento do poema como órgão figural (Gusmão), ou da poesia como acedia (FPA), nem a conceção neotextualista de um Quintais.
5.O que lemos em NJ, ao longo dos anos 90 e já no século XXI, é bem essa imersão do poema numa tradição que, tocada pelo romantismo-simbolismo, por Mallarmé e a reflexão sobre a crise do verso, o coloca numa posição favorável ao despojamento, símile dessa tentação clássica que o levará a cultivar o soneto. Essa contensão é indissociável dum outro tema maior da sua escrita: a ideia de que escrever o poema é aceder a um tempo primordial, deixando-se seduzir pelo intertexto, pelos efeitos retóricos da citação ou do reenvio eruditos, fazendo da poesia uma arte de estatuária. Um título dum poema seu, “Criação”, poderia, em rigor, dar título a esta antologia de 50 anos de poesia. É que é a criação (ou a recriação) constante dum poema que fixe, que eternize o efémero humano o que singulariza a arte judiciana.
Talvez nenhum outro poeta do nosso tempo tenha, como Nuno Júdice, assumido de forma tão radical o fascínio de esculpir, em formas fixas ou livres, os mitos, as paixões e as contradições de uma Europa e de um mundo que, sob as ruínas, o poeta reedifica, ou purifica numa subversão total – limpar ou libertar o real das suas ruínas não é absolutizar a limpidez em nome duma qualquer poesia pura. Como nenhum outro, o poeta sobrecarrega, nesse processo de purificação, o texto dum pensamento que, posto na página, ao passar pela superfície do real, o transforma, o embacia para dar a ver a outra realidade que a poesia cria: “Se eu quisesse falar das tarefas da poesia/ talvez começasse por compará-la com o que/ se tem de fazer a uma janela quando os vidros/ estão sujos de de um pó de muitos anos de vento/ e abandono. Então passo o pano da metáfora/ por esse vidro, mas em vez de o limpar ainda/ acrescento ao pó as imagens que vinham agarradas ao pano” (p.205).