Terceiro livro de Anne Carson publicado em Portugal, depois de Autobiografia do Vermelho e A Beleza do Marido, Vidro, Ironia e Deus remete-nos para o processo de consolidação do estilo inconfundível da escritora canadiana que nos últimos anos tem sido apontada ao Prémio Nobel de Literatura. Nascida em Toronto, em 1950, Anne Carson é uma reputada tradutora, professora e ensaísta nas áreas do grego antigo e da literatura clássica. Muito da sua poesia vai beber a essa fonte primacial da cultura ocidental, com referências e glosas a figuras da mitologia e da tragédia. Mas é o seu estilo, inconfundível como se disse, também intransmissível e irrepetível, o principal responsável pela singularidade que marca a sua obra: romances em verso, relatos autobiográficos em sequências de poemas e ensaios que se constroem quase ao jeito de aforismos.
Tudo isto encontramos em Vidro, Ironia e Deus, que encerra com um ensaio (este com as devidas regras académicas de citação e bibliografia) sobre “o género do som” que parece condensar todas as suas pesquisas sobre a voz de um autor e sobretudo de uma mulher. O que poderia ser um apêndice, tão diferente dos outros cinco poemas, revela-se afinal o magma de uma autora que, em 1995, quando dava os primeiros passos na poesia (publicou o primeiro livro em 1986), procurava a sua individualidade. Ao refletir sobre como a voz feminina foi percecionada (e criticada) na antiguidade clássica, mas também por autores como Freud ou Hemingway, Anne Carson estava a lançar as bases de um manifesto feminista e libertador. “Pôr uma porta na boca feminina tem sido um importante projeto da cultura patriarcal desde a antiguidade até ao presente. A sua principal tática é uma associação ideológica de som feminino com monstruosidade, desordem e morte”, afirma.
Afastada do espaço público pelo seu “som”, pelos seus “gritos”, pela sua “histeria”, a mulher estaria também longe do manejo dos códigos literários, tão necessariamente convencionados e contidos quanto o falar masculino. É contra esta ofensa que Carson ergue a sua obra. “Não haverá outra ideia de ordem humana para lá da repressão, outra noção de virtude humana para lá do autocontrolo, outro tipo de eu humano que não um fundado na dissociação de interior e exterior”, questiona-se no final do referido ensaio. A resposta já estava dada nos cinco poemas anteriores, modelados com total soltura, numa deambulação entre o vivido e o herdado por via da literatura e do pensamento.
É quando se mostra vincadamente narrativo e confessional que o registo poético de Anne Carson se torna ainda mais interessante, como acontece com o poema inaugural deste volume, O Ensaio de Vidro. O fim de uma relação amorosa e a visita à casa da mãe são pretextos para uma reflexão sobre a vida e obra de Emily Brontë e a sua capacidade de fixar em palavras paixões que nunca terá vivido. Porque, como também se depreende da leitura de A Queda de Roma: Um Guia de Viagem, outro poema deste livro, só com voz própria se poderá encontrar sentido na estranheza que nos rodeia e nos habita.
Anne Carson
Vidro, Ironia e Deus
Tradução de Tatiana Faia, não (edições), 176 pp, 15 euros