Pouco tempo depois da morte de Manuel António Pina (MAP), em 2012, dez personalidades decidiram promover uma iniciativa muito especial: o Clube de Amigos à Espera do Pina. Se o título brincava com aquilo a que os que lhe eram mais próximos estavam sujeitos, embora o aguardassem sempre com agrado, o objetivo era perpetuar a obra de um escritor de exceção. O seu “presidente” era Álvaro Magalhães, que com ele conviveu durante décadas e agora cumpre mais uma etapa decisiva na divulgação da poesia, do jornalismo, da literatura infanto-juvenil, também do pensamento e do humor, de uma das figuras “mais singulares” da Língua Portuguesa.
Para quê Tudo Isto? , uma edição da Contraponto, percorre a vida de Manuel António Pina, desde a descoberta das palavras na infância até à consagração que a atribuição do Prémio Camões em 2011 representou. É um relato capaz de recordar muitos episódios e histórias, sempre inesperados e divertidos, e de entrecruzar a vida com a obra, nomeadamente com os seus versos e crónicas.
Embora de início tenha hesitado em aceitar o desafio que lhe foi feito, Álvaro Magalhães socorreu-se das suas memórias de amigo e admirador, a que juntou as de outros que com ele também conviveram de perto. O livro O Senhor Pina, que escreveu e lançou na cerimónia de apresentação do tal Clube de Amigos à Espera do Pina, também lhe deu a base de uma perspetiva biográfica agora alargada com o tempo e a concentração proporcionados pela pandemia.
Autor de uma vasta obra, nomeadamente nos domínios da literatura infanto-juvenil, por diversas vezes premiada, e editor ocasional de Pina, o autor capta nesta biografia – a sair pela Contraponto e na mesma coleção das biografias de Agustina e de Cardoso Pires, a que o JL largamente se referiu – um universo que deve tanto à literatura quanto à filosofia, ao gosto pelo jogo e ao deslumbre pelo nonsense de Winnie the Pooh.
Jornal de Letras: “A minha vida não tem nada de extraordinário. Ou talvez tenha, sem eu saber. Hei de perguntar a alguém que me conheça”, escreveu MAP. Sentiu que esta frase, que escolheu para epígrafe da sua biografia, lhe era dirigida?
Álvaro Magalhães: Talvez, mas o que me levou a este projeto foi o convite do editor, Rui Couceiro. Embora já tivesse usado o MAP como personagem mais do que uma vez e de num desses livros (também) para a infância, O Senhor Pina, haver já uma inclinação biográfica, nunca tal coisa me passara pela cabeça. Pedi tempo para pensar e tive de me convencer a mim próprio, o que não foi fácil. Porém, e com uma pequena ajuda da pandemia, que criou as condições ideais para a criação literária, fiz esta biografia tão depressa que, no final, me interroguei se não teria feito batota, como se interrogou Pina (vou passar a tratá-lo assim, como toda a gente que o conhecia) quando soube que ganhara o Prémio Camões, em 2011.
Ser seu amigo de convívio diário facilitou ou dificultou o seu trabalho? Ou melhor, como lidou com a distância que um trabalho como este por vezes pede?
Não sei se um trabalho destes pede distância. Quanto mais distante se está do biografado, mais o biógrafo tem de se esforçar para se aproximar, quase sempre recorrendo aos que o conheceram. Esta é a biografia, como diz, do amigo, do leitor, do admirador, ou seja, de alguém que esteve sempre muito próximo e, portanto, fala a partir de uma interioridade. No princípio, confesso que estava com pudor de deixar à mostra a proximidade, até perceber que esse conhecimento direto podia ser uma vantagem, um instrumento de precisão e rigor, por um lado, e, por outro, de empatia, um laço para capturar a adesão sentimental do leitor.
E como é que a pandemia, como disse, o ajudou? Com o tempo e a concentração necessária?
A pandemia foi decisiva, seja para eu aceitar o encargo, seja para ter condições de o desenvolver. Além de me aliviar de compromissos vários (“gostava de ir, mas agora não se pode”), também me deu ritmos regulares de trabalho. Foi um período muito produtivo para mim — e penso que para muitos — pois não me limitei a escrever a biografia, ainda tive tempo para os meus projetos de literatura (também) infantil e juvenil, para as crónicas, etc. Tenho repetido isto: será que o mundo está preparado para receber todos os livros que vão aparecer no final da pandemia?
Como se faz um livro destes num tempo de tão poucos contactos sociais? A Internet e seus derivados ajudam?
Fiz os contactos necessários por telefone ou por zoom, o que também acabou por ser muito prático, pois reduziu as entrevistas ao essencial, o que me poupou algum tempo e paciência. Foi engraçado ver como toda a gente se adaptou, com mais ou menos dificuldades, a essa nova maneira de comunicar. E, milagrosamente, as coisas continuaram a fluir.
Qual foi a recetividade das pessoas que contactou? Há a ideia de Pina ser um autor de fervorosos adeptos, sempre prontos a divulgar uma obra que devia ser mais conhecida…
É verdade: sempre foi e continua a ser um autor de culto, fundamental e inesquecível, para muita gente. Por um lado, foi o inventor de uma literatura infantil inspirada na arte maior de Lewis Carrol e A. A. Milne, que é a arte da exploração das possibilidades da linguagem e do nonsense, que não é falta de sentido, mas sentido outro, uma literatura que abriu um caminho luminoso que muitos seguiram. Por outro lado, ergueu uma das maiores e mais originais criações poéticas do seu tempo, pelo domínio da língua, pelo fulgor criativo, pela recriação da sintaxe e da ortografia, pela ironia e pelo humor e pela vitalidade ontológica, uma obra tão singular que escapa a qualquer tentativa de categorização, arrumação ou enquadramento. E note-se que, para ele, as duas categorias, literatura infantil e poesia…
Não eram coisas diferentes…
… Não eram coisas diferentes e por isso, caminharam sempre a par, do princípio ao fim. Digamos que tinham a mesma natureza, apenas encontravam modos de expressão diversas. Espero que este livro contribua para que a sua obra seja mais conhecida. Porém, ela continua a despertar grande interesse, suscitando cada vez mais estudos, também no Brasil, e parece perfeitamente equipada para se adaptar aos leitores do futuro. Borges dizia que lhe bastava ser recordado por um único verso e Pina também fez um pedido idêntico: “Fazei com que alguma coisa permaneça/ Um verso, um poema.” Porém, não é um verso, um poema, que permanece, é toda uma obra que se mostra capaz de desafiar uma das mais fatais leis da vida: o esquecimento.
Dividiu a biografia por décadas (mais alargadas no início e no fim). Correspondem a grandes mudanças na vida de Pina?
Foi apenas um modo de organizar o caos inicial. Ou antes, para ter a ilusão de que o organizava. Mas essas seis partes não funcionaram como prisão cronológica, pois os acontecimentos transitam livremente no tempo. Na parte da infância, por exemplo, o adulto está sempre a irromper, criando nexos e novos pontos de vista, novos caminhos de narração. Alguns capítulos também servem para encapsular certos temas (o conversador, o fumador, o amante de gatos, o jogador, o praticante de viet-vodao, o advogado, mas também a relação da sua poesia com a ciência, a religião, o cinema), para melhor tratar esses temas, evitando que se dissolvam na narrativa geral e fazendo com que funcionem como micro-ensaios. Como também há uma espécie de biografia da sua criação literária e se dá um largo espaço aos seus livros e às suas circunstâncias, à sua muito peculiar visão do mundo e da literatura, o que inclui uma espreitadela à sua oficina criativa, penso que, não deixando de ser uma biografia, este livro se aproxima também do ensaio literário.
Qual é, para si, a principal marca do percurso do seu biografado?
Sem dúvida, a singularidade. Somos todos mais ou menos parecidos uns com os outros, ele era uma dessas criaturas raras, únicas, que só se parecem com elas próprias. E essa singularidade aplica-se ao homem, mas também ao criador e ao conjunto da sua obra, que é difícil de categorizar ou situar, sendo sempre muito redutor integrá-la num qualquer movimento, geração, corrente. O que o torna biografável é a grandeza e originalidade dessa obra, que ocupa um lugar central neste livro, mas também dediquei toda a atenção à sua solidez humana e à sua personalidade carismática e cativante. Eduardo Prado Coelho definiu-o como alguém “vagamente enigmático, desconcertante como um sorriso de gato, podendo ir ao ponto de ter um sorriso de gato sem gato”.
Da sua biografia sobressai a imagem de um criador que se entregava totalmente a qualquer assunto que o interessasse, da filosofia ao jogo, do jornalismo à poesia, do Tao ao desporto…
Vivia quase tudo com paixão. Como se lê num poema de Herberto Helder, “os gregos antigos não escreviam necrológios,/ quando alguém morria perguntavam apenas: tinha paixão?”. Ele tinha, e muita. Como também se diz nesse poema “tinha paixão pelas coisas gerais,/ água, música,/ pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos”. Mesmo quando fazia coisas por obrigação, para ganhar a vida, como ele dizia (jornalismo, crónicas, guionismo, publicidade), sentia-se obrigado a dar o máximo. Dizia que “o mínimo que nos é exigível é o máximo que somos capazes de fazer.”
Também atraía (ou se metia em) muitas histórias. Conviver com ele era uma aventura, nomeadamente em viagem?
Podia não haver aventura, mas havia sempre a busca dela, e tudo podia acontecer. Por vezes, tudo menos aquilo que estava previsto (um colóquio, um encontro escolar, uma reunião). Fazer uma viagem de carro com ele a conduzir não garantia a chegada ao destino, mas quase sempre prometia uma qualquer aventura. Clarice Lispector diz que “perder-se também é caminho”. Para ele, “perder-se é que era o caminho”, o que abria um recetáculo para os acontecimentos inesperados. Quando acontecia só o que estava previsto, ele dizia, desconsoladamente, à chegada, com o seu amigo Joanica-Puff: “Pelo menos não choveu. Já foi uma grande proeza”. Também era um prazer conviver com ele, dada a sua inteligência, humor, ironia. Era um conversador cativante, quase hipnótico, um contador de histórias nato. E, claro, esse convívio era sempre também uma alegria, dada a sua disponibilidade permanente para a brincadeira e o riso.
Como poeta, Pina remetia muitas vezes os leitores para os próprios poemas, evitando mais explicações. O que podemos descobrir, como leitores, ao mergulhar na sua poesia?
Ele dizia que o poema era tudo o que havia a dizer sobre o poema. E, de facto, não há nada a dizer sobre um poema que o próprio poema não diga melhor. Não explicar um poema, se esse poema for de Pina, é uma boa explicação. E para que escreveria ele os poemas se os pudesse compreender ou explicar? Quando pediram ao pintor Francis Bacon para explicar um quadro seu, ele respondeu: “Para quê pintá-lo se pudesse explicá-lo?”. Aliás, Pina só validava os poemas que excediam a sua compreensão.
Validava?…
Sim, aqueles de que estava autoconsciente, normalmente, rejeitava-os: escrevia para saber o que não sabia que tinha a dizer. Os poemas dele não são redutíveis a emoções, sentimentos ou vivências (“os sentimentos sentem-se, a poesia não tem nada que ver com isso”, dizia), não são sobre nada (“o poema é o seu próprio tema”, escreveu também), não refletem realidades, ideias ou quaisquer circunstâncias pessoais. São pura exterioridade, dispositivos verbais que provocam estados poéticos em quem lê. É, pois, nos leitores que esses poemas, muitas vezes, encontram a sua referencialidade. Enquanto leitores, não vale a pena esforçarmo-nos para compreender, decifrar a sua poesia, basta ouvi-la como se fosse uma espécie de música, uma música que só se pode ouvir através das palavras, daquelas palavras. À poesia, dizia ele, pouco mais é dado do que ser essa voz, ou esse silêncio que se serve das palavras para se fazer escutar.
No caso de Pina, no início era mesmo a palavra? Quando dizia que não tinha escolhido a literatura mas tinha sido escolhido por ela, falava verdade?…
Quando alguém diz que, aos 6, 7 anos, os seus brinquedos eram as palavras, só pode tratar-se de um daqueles que a literatura escolheu para ser literatura. Ele dizia que a literatura se escrevia a si própria através do escritor. “Fantástica literatura esta/ que a si própria se faz”. Daí que a sua biografia tenha seguido o rasto da sua relação com as palavras, desde o início, uma relação que foi uma autêntica história de amor. Ele adorava palavras e as palavras voavam deslumbradas para ele. Era um idílio. E, de um modo ou de outro, as palavras estariam sempre no centro da sua vida, uma vida de palavras, uma existência como se fosse um livro, literatura. Como Borges, ele poderia dizer que o facto central da sua vida foi a existência de palavras e a possibilidade de as tecer em poesia. Porém, não seria só o poeta a beneficiar dessa intimidade, mas também o autor de literatura infantil, o jornalista, o cronista, o guionista, o advogado e o publicitário. Até no serviço militar, que fez em plena guerra colonial, o esperava uma nova especialidade, a “ação psicológica”, em que explorava as possibilidades da linguagem.
Na infância parecem concentrar-se, como talvez em todos os criadores, as forças da sua escrita: a errância e o regresso, a leitura e as palavras, a culpa e fantasia…
Encontrei na criança e no adolescente quase tudo o que viria a caracterizar o criador adulto: a brincadeira com as palavras e o amor que lhes tinha, a poesia como refúgio, o leitor abnegado, o imaginador, mesmo noções como a da circularidade da existência parece que nasceram com ele. Também é na infância que se encontra a explicação para muitas dessas características, como a indisponibilidade para viajar e o gosto pelo regresso, uma consequência da errância forçada que viveu, até aos 17 anos, altura em que a família chegou ao Porto e, por fim, assentou e ganhou raízes. Também a impossibilidade de manter amigos na infância haveria de se refletir na sua valorização da amizade, que dizia ser “a mais alta forma de amor” e que, para ele, era um alimento precioso, quase um culto, uma religião.
Está na infância também o seu humor, sobretudo a vontade de ser Salazar, como se profissão fosse.
O seu sentido de humor, refinado e elegante, era uma das suas características mais notórias – o que, de resto, constitui um capítulo do livro: “O Pina cheio de graça”. Ele tinha graça mesmo quando não queria ou não estava a ser engraçado. Também tinha aversão à excessiva seriedade de tudo, e aos que se levavam muito a sério. E não foi ele quem escreveu: “as coisas sérias, que cómicas que são?” Porém, essa convicção infantil era uma coisa séria. Ele dizia que queria ser Salazar quando crescesse por pensar que isso era uma atividade, uma profissão. Felizmente, não era. Quando iam visitas lá a casa, a mãe fazia-lhe a pergunta para o ouvir dizer que queria ser Salazar e ela e as visitas se rirem enternecidamente. Mas também dizia que queria ser santo, um desejo que talvez estivesse na raiz da sua bondade. A bondade, dizia ele, é a maior de todas as qualidades, inclui a beleza, a justiça e a verdade.
É a centralidade da infância que o levou a escrever, e a ‘modernizar’, a escrita para os mais novos?
Acredito que sim. O seu insaciável desejo de infância, que correspondia a um desejo de recuperação do estado puro do mundo, da linguagem e do ser, é um dos fatores que o empurrou para a escrita de livros infantis, o que também lhe permitia reviver a infância da própria linguagem. Como ele disse, “ser criança é próprio do homem e escrever para crianças é, no fundo, escrever para aquilo que há de mais humano no próprio homem.” Enquanto escrevia, criava, e isso também fazia dele um ser em criação: uma criança. Aliás, ele sempre foi uma criança, independentemente da idade que tinha, e viveria num estado de infância permanente em todas as estações da vida. Tratava-se de uma vivência segunda, uma inocência que se sabia inocente e que, portanto, era ainda mais perigosa.
De que mais gostava no Pina jornalista/cronista? Quando se fizer a história do jornalismo português, que destaque terá o seu nome?
Foi, desde o início da carreira, em 1969, um jornalista destacado, muito à frente da sua época. O primeiro chefe de redação com quem trabalhou, Manuel Ramos, admirava principalmente a precisão e correção da sua escrita. Dizia-lhe: “Você fez-me descobrir o prazer dos pontos e vírgulas!” Porém, o que mais o diferenciou foi a arte da crónica, de que foi um mestre absoluto. As que fez, a partir de 2000, para a VISÃO e a Marie Claire, e depois de 2005 para o Jornal de Notícias e o Notícias Magazine, tornaram-se referenciais e, ao mesmo tempo, muito populares, abrangendo um espectro muito alargado de leitores, o qual ia do professor universitário ao empregado de café.
Eram crónicas também ‘literárias’…
Pina colocava-as numa dimensão não literária, dado o seu registo e a sua natureza “temporária” (eram filhas de Cronos) e é certo que as suas circunstâncias foram ficando pelo caminho, mas elas eram também belas construções verbais, de grande fulgor literário, o que lhes atribuía distinção e duração. Há quem pense, como Sousa Dias, que organizou antologias dessas crónicas, que elas fazem totalmente parte, de pleno direito, da sua obra literária, pois eram crónicas de escritor, onde o interesse da crónica não é o assunto que trata mas a sua linguagem.
Defende na biografia que Pina pode ser considerado, sem desmerecimento, um autor de um único livro. Há na sua obra uma forte unidade e coerência?
É uma outra marca da sua singularidade absoluta. Não teve um livro inicial incipiente que tivesse de renegar, como tantos, nem houve no seu percurso evoluções, sobressaltos, fases e isso. O primeiro livro, de 1974, não difere muito do último, de 2011. Houve apenas, ao longo do percurso, algumas modulações: os livros dos anos 70 exprimem a negatividade própria dos que chegaram tarde à literatura. Havia um esgotamento de todo o dizer, pois já estava tudo dito pelos clássicos e era impossível criar o novo, ou, como dizia a poesia de Pina, “já não se podia falar/ nem se podia ficar calado”. Por sua vez, os livros dos anos 80 incorporam o gosto pela reflexão filosófica e os dos anos 90, a partir de Farwell Happy Fields e Cuidados Intensivos, trocam o fulgor abstrato por uma perspetiva mais ‘mundana’ (as filhas, os gatos, a mãe morta). Mesmo nas últimas obras, como Os Livros, de 2003, e Como se desenha uma casa, de 2011, retomam versos e aforismos de obras anteriores, reescrevendo-os, de tal modo que poderiam funcionar como uma revisão criativa da matéria dada até então. Há uma coerência constante, uma grande coesão. Existe um conjunto de livros, sim, mas é como se fosse um único livro.
Foi, no entanto, um poeta celebrado tardiamente, ao contrário do cronista, que contava com imensos leitores. A singularidade da sua voz, imbricada tanto em jogos de palavras, quanto em diversas referências, causou estranheza?
A estranheza e a singularidade custou-lhe o anonimato e a indiferença que a sua obra teve, desde a sua aparição, em 1974, até 1999, já ele ia em idade avançada, quando chegou à prestigiada editora lisboeta Assírio & Alvim, dirigida por Hermínio Monteiro, e que então publicava poetas como Herberto Helder e Mário Cesariny de Vasconcelos. A edição de Nenhuma Palavra e Nenhuma Lembrança, em 1999, seguida de Poesia Reunida, colocou-o no centro das atenções do meio literário, começando a surgir como autor de uma obra maior. Tratava-se de um livro “como os outros”, que repetia as suas obsessões temáticas, os seus tópicos nucleares. A diferença estava na capa, que logo se reconhecia como sendo uma das muito referenciais edições da Assírio & Alvim. Como, de resto, disse, a Pina, Osvaldo Silvestre, um amigo e crítico que já muito escrevera sobre a sua obra: “Quem tem capa sempre escapa.” E até Óscar Lopes, que descartara o poeta na 15.ª edição da História da Literatura Portuguesa com a frase “intrigantemente monocórdico”, lhe telefonou a dizer que lamentava não se ter apercebido da importância da sua poesia e que na próxima edição, a 17.ª, iria emendar a mão. E assim seria. Nessa edição, Pina passou a ser o autor de “uma das mais consistentes obras vindas dos anos 70 da literatura portuguesa”. A partir daí, a sua poesia suscitaria um interesse e admiração crescentes, o que culminaria no Prémio Camões, em 2011, um ano antes da sua morte.
Qual o verso que melhor define Manuel António Pina?
Talvez “Para quê tudo isto? Para quê tudo isto?”, uma citação de um poema do livro Chicago Poems, de Carl Sandburg, que ele repetia frequentemente e que nos remete para a indagação do sentido do mundo, ou o lamento pela sua falta, e para consciência da irrelevância e da desnecessidade de tudo. Era uma pergunta que ele tinha sempre na cabeça: “Uma pergunta numa cabeça/ como uma coroa de espinhos”. E quem não a tem? Afinal, é a pergunta das perguntas. E é uma pergunta a que só se pode responder fazendo outras perguntas, tal como acontecia com a sua poesia, que é uma autêntica máquina de questionamento. Pergunta e responde com outras perguntas. Tudo é dúvida nessa poesia. Por vezes, até uma certeza ou uma evidência vem acompanhada do seu contrário. Por isso, o título de uma biografia dele só poderia ser também uma pergunta.