Mais do que as múltiplas reedições, inesgotáveis numa obra que ultrapassa as duas centenas de canções inconfundíveis, do que as referências na Imprensa do seu país mas também na espanhola, na italiana, na alemã e na britânica, do que as festas e homenagens em Sète, cidade do sul de França de onde era natural, e em Paris, há algo que impressiona ainda mais na passagem do centenário do nascimento de Georges Brassens, assinalado a 22 de outubro último.
Esse fator extra, sintoma de boa memória, reside no facto de que o património do cantor, mais do que a sua vida, continue a ser estudado, recordado e difundido. Brassens alvo de grupos de reflexão (alguns deles com inscrições bem pagas), de cátedras e teses universitárias, de clubes de aficionados que estão longe de se cingir à região demarcada da francofonia. Se é certo que o autor de Les Amoureux des Bancs Publics morreu há 40 anos (a 29 de outubro de 1981), mantém-se ligada a corrente que lhe presta justiça como um dos pais fundadores e um dos intemporais expoentes de uma certa canção francesa.
Os seus pares mais vezes reconhecidos são o monegasco Léo Ferré (1916-1993) e o belga Jacques Brel (1929-1978). Se os três apresentam um dado comum, com passagens pouco prazenteiras por escolas católicas, as semelhanças parecem ficar por aí – Ferré dispôs de formação musical clássica, ao contrário dos outros dois, considerados autodidatas, ou quase. Se Ferré nunca virou a cara ao experimentalismo sonoro, sobretudo nos anos da maturidade, Brel e Brassens viajaram sempre por perto do formato da canção.
Ambos começaram por querer afirmar-se como autores e compositores. Com uma diferença: Brel não conseguiu cativar intérpretes para as suas criações, Brassens preferiu sempre reservá-las para a sua própria voz. Entre ambos, o abismo cavava-se em palco: o belga era teatral, excessivo, empolgante, enquanto Brassens nunca saiu de um registo discreto, dispensando orquestras e “passes de mágica”. E se o homem doplat pays acabou, na prática, por trocar a música pelo cinema, o sulista francês nunca procurou outra ocupação profissional, que lhe rendeu a imagem de solitário (num claro exagero), de franco-atirador (classificação que certamente apreciaria) e de garimpeiro das cantigas (algumas das suas peças levaram anos a descobrir a forma final). Ironicamente, ou talvez não, chegou a afirmar que, sem a música, ter-se-ia provavelmente tornado carteirista…
Meliante, exilado à força, libertário
Georges Brassens, filho de um pai maçon e de uma mãe católica, cresceu em Sète, na zona de Montpellier, com muita praia, banhos de mar e… liberdade. Longe do estatuto de aluno exemplar, são as más notas que lhe valem, de resto, o primeiro grande conflito com a mãe, que – como castigo – decide retirá-lo dos estudos musicais. Isso não o impediu de crescer a ouvir Tino Rossi ou Charles Trenet, nem de descobrir a poesia aos 14 anos. O episódio marcante que vem a seguir ajuda a ditar-lhe o destino: envolve-se com um grupo de rapazes que assalta casas na pequena cidade. O desfecho traz-lhe a captura policial, uma sentença com pena suspensa, por ser menor, o fim da escolaridade e a reputação arruinada, na sua terra – além da inspiração inicial para um dos seus hinos, La Mauvaise Réputation.
São motivos suficientes para convencer os pais a deixá-lo partir para Paris. Em 1940, já em plena II Guerra Mundial, Georges vive na capital, alojado em casa de uma tia materna. Onde também mora um piano, que vai aprendendo a tocar sozinho, enquanto trabalha como operário numa fábrica da Renault. Publica o seu primeiro opúsculo de poesia, pouco antes de saber que será integrado num esquema de serviço obrigatório que o leva, às ordens dos nazis, para exercer a profissão em Basdorf, na Alemanha.
Curiosamente, é longe do seu país que escreve as suas primeiras canções e, renitentemente, as apresenta aos companheiros de exílio. Aproveita uma licença de férias em Paris, para não voltar ao estrangeiro. Entra numa espécie de clandestinidade para escapar aos germânicos e aos colaboracionistas. Descobre refúgio junto de um casal, Jeanne (mais velha 30 anos do que Georges) e o marido, Marcel. Vivem os três sem gás, eletricidade ou água quente. Mas Brassens continua a escrever e a compor, sem guitarra mas com a ajuda de um banjo esquecido em casa de Jeanne, inequivocamente sua amante. Cimenta as suas convicções anarquistas, a que alguns preferem chamar libertárias, a que junta um perene sentimento antimilitarista e anticlerical. Trabalha no jornal Le Libertaire, como revisor, secretário de redação e colunista, usando – entre outros – os pseudónimos Pépin Cadavre (“cadáver”) e Charles Malpayé (“mal pago”).
Brassens há de ser, por muitos anos, uma das figuras beneméritas das festas e concertos dos anarquistas, alternando com Ferré. Mas tal não o impede de escrever Mourir Pour des Idées, um dos seus hinos mais controversos, que causa indignação às esquerdas mais ortodoxas, incapazes de perceber que estavam diante de um não-alinhado e de um livre-pensador, que nunca se filiou politicamente.
O palco, os discos, o património
O grande salto na sua carreira está reservado para 24 de janeiro de 1952, quando dois amigos o convencem a fazer uma audição para a popularíssima Patachou, dona de um conhecido cabaret em Montmartre. A atriz e cantora convence-o, a custo, de que só ele pode fazer justiça, com o seu jeito de interpretar, ao que compõe e escreve. Brassens começa a atuar na sala noturna, valendo-se da ajuda exclusiva de um contrabaixista, Pierre Nicolas, cuja presença em palco passa despercebida muitas vezes, uma vez que faz questão de não sair da zona de penumbra. Os ecos são de tal maneira fortes que, menos de dois meses depois, a 19 de março, o cantor está a gravar o seu primeiro disco de 78 rotações.
Logo nas primeiras etapas, fica revelado o cronista, o humorista, o combatente. Gravará entre 1953 (também ano de estreia de Brel) e 1976. Serão duas centenas de cantigas, maioritariamente escritas e compostas pelo próprio, que também recorre à riqueza dos poetas, dos mais conhecidos, como Verlaine ou Victor Hugo, aos que ajudou a recuperar do esquecimento, como François Villon ou Paul Fort, passando por Louis Aragon, que não foi afinal um exclusivo de Ferré. Sem nunca superar suores e angústias antes da entrada em palco, tornou-se um êxito popular e uma referência da crítica.
Salientam os estudiosos a importância que desempenhou no uso das palavras para as canções, sem tabus e sem compromissos, sublinham outros que a canção – aparentemente clássica – ganhou novas asas nas harmonias e na construção, tanto mais que Brassens optou sempre por não complicar a instrumentação e os arranjos, defendendo como essencial que quem ouve não deve ser distraído dos textos. Ainda assim, recusou sempre ser referido como um poeta…
Usou muito a própria vida para se inspirar. Um exemplo: viveu até ao fim ligado a Joha Helman, eslovena de origem, a sua Puppchen, sem nunca com ela se ter casado e sem nunca terem partilhado casa. O que o levou a uma canção singular, La Non Demande En Mariage. Escreveu sobre pessoas e sobre ideias, de Chanson Pour l’Auvergnat (a solidariedade) a La Complainte des Filles de Joie (a prostituição, algo que lhe valeu a gratidão das “mulheres da vida”), de Le Gorille (contra a pena de morte, cuja abolição ainda vê aprovar) a Suplique Pour Être Enterré À La Plage de Sète (súplica só parcialmente cumprida, uma vez que o seu corpo foi reconduzido para o jazigo familiar, na cidade).
Entre os que lhe recriaram as canções avultam Maxime LeForestier e Renaud, Juliette Gréco e Françoise Hardy ou, além-fonteiras, o sublime italiano Fabrizio De André e o genial – e esquivo – espanhol Paco Ibañez. Tocou pouco no estrangeiro (Bélgica, Suíça, Itália, norte de África, País de Gales – onde foi estudado na universidade de Cardiff), porque não gostava de viagens, mas está traduzido em 82 línguas e idiomas. Sobre ele escreveram os maiores dos maiores, de Gabriel Garcia Márquez a Mario Vargas Llosa. Foi membro da Academia Francesa. Mas foi, sobretudo, livre como o vento, ora brisa, ora tempestade.