E, de repente, dois recitais de canção de câmara, dois compositores, Fernando Lopes-Graça e Kurt Weill, duas visões da música do século XX, uma preocupação similar com a palavra, objetivos humanos e sociais próximos e, em ambos os álbuns, excelentes músicos, o barítono Ricardo Panela, nos seus discos de estreia em nome próprio, a soprano Susana Gaspar e o pianista Nuno Vieira de Almeida, nome essencial no ‘lied’, revelador de gerações de cantores, parceiro de grandes vozes portuguesas e estrangeiras. Em suma, o melhor que se pode ter.
Do compositor português, surge na Naxos o segundo volume das “Songs and Folksongs”, que o pianista empreendeu com alguns dos principais cantores portugueses da atualidade (Fernando Guimarães, Cátia Moreso, Susana Gaspar e, agora, também Ricardo Panela) e, do compostor alemão, com o ‘selo’ Artway, uma seleção que atravessa cerca de duas décadas do seu percurso, e que inclui tesouros como “Four Walt Whitman songs”, “Je ne t’aime pas”, “Complainte de la Seine”, a utopia de “Youkali”, pela primeira vez cantada em dueto, sem esquecer o imenso apelo de “Speak low”, que encerra o álbum.
“A música de Kurt Weill tem esse efeito: o poder de atribuir a nota certa à palavra certa, no momento certo, e mexer com algo dentro de nós que nos faz olhar para a nossa própria existência e condição neste mundo”, escreve Ricardo Panela, no texto que acompanha a edição em CD, e constitui uma apresentação rica e essencial do seu programa.
“Nanna’s lied”, o ponto de partida, põe desde logo “as cartas na mesa” sobre o que acontece a seguir. Como escreve Panela, trata-se de “um exemplo perfeito desse caráter humanista da música de Weill, e da ideia de que todas as formas de existência humana são dignas de menção”. Com letra de Bertolt Brecht – não podiam faltar canções desta parceria –, datada de 1939, quando a guerra era já inevitável e a brutalidade nazi uma evidência de anos, traduz a reflexão de uma prostituta, sobre a desumanização a que está sujeita. À semelhança de muitas das canções que se seguem, a memória de “Nanna’s lied” tem sido sobretudo interpretada por mulheres, por cantoras notáveis como Teresa Stratas, Anne Sophie Von Otter, Brigitte Fassbaender e Ute Lemper. Mas aqui é o barítono que dimensiona o drama e não há motivo para que o lamento não tenha também origem numa voz masculina. A canção inscreve-se obviamente no registo do ‘lied’ alemão, com a sua estrutura estrófica, e a emoção e o sentimento constantemente impostos à interpretação, mas vai além do modelo, na sua modernidade. É um desafio permanente, a exigir a medida certa do intérprete, um desafio reforçado pelo equilíbrio entre canto e declamação, que se estende ao piano e ao caminho por si desbravado, um desafio obvia e brilhantemente superado por Ricardo Panela e Nuno Vieira de Almeida, que se estende a todo o disco.
Segue-se uma das mais poderosas e nem sempre evidentes canções de Weill, de algum modo a sua declaração antiguerra (“Und was bekam des Soldaten Weib?”/“E o que recebe a mulher do soldado?”), uma balada escrita com Brecht, datada de 1942, quando a campanha na Rússia fazia com que a resposta à pergunta fosse o “véu de viúva”, acabando por servir a propaganda antinazi. A ela contrapõe-se de imediato a luz de Berlim, “Berlin im licht”, canção de 1928 que dá nome ao álbum, e a mais antiga de toda a sequência, composta para um festival de luz, ainda sob a República de Weimar, mas que ganha cambiantes, perante o que se passou depois.
A primeira parte do recital encerra com “Es regnet” (“Está a chover”), de 1933, quando o Kurt Weill deixou a Alemanha e se fixou em Paris, uma canção inspirada por Jean Cocteau, e à qual se torna impossível não associar o tom sombrio da subida de Hitler ao poder: “Chove, o sol pode não voltar a brilhar”.
O ciclo composto pelas “Quatro Canções de Walt Whitman” forma, de certa maneira, o núcleo do álbum. Escrito entre 1941 e 1947, abre com “Beat! Beat! Drums!”, o poema do alvor da guerra civil americana, que Weill musicou 80 anos mais tarde, quando a II Guerra Mundial devastava nações. De imediato compôs “O captain! My captain” e “Dirge for two veterans”, poemas marcados pela guerra da secessão, para o barítono John Charles Thomas. Weill concluiria o ciclo em 1947 com “Come up from the fields, father”, então escrita para o tenor William Horne, o que levou a transpor todo o ciclo para uma voz mais aguda, a versão hoje mais divulgada. Esta gravação tem também o mérito de retomar as tonalidades originais – contando com uma fabulosa interpretação da canção mais recente pelo tenor Alberto Sousa, mais um nome a reter, entre os grandes cantores portugueses (e que recentemente protagonizou “O Nariz”, de Chostakovitch, na Royal Opera House).
Ricardo Panela, que pôde ser ouvido no “Diálogo das Carmelitas”, de Poulenc, no Teatro Nacional de São Carlos, em 2016, onde voltou pouco depois para fazer “L’enfant et les sortiléges”, de Ravel, tem feito uma carreira sobretudo em palcos internacionais, nomeadamente no Reino Unido onde prosseguiu a sua formação, após a licenciatura na Universidade de Aveiro, e onde protagonizou produções como “Mad King Suibhne“, de Noah Mosley. No texto que acompanha o álbum, o cantor estabelece um guia sobre a excelência deste ciclo: a brilhante ilustração do texto pelo compositor, o papel do canto e do piano em função dos poemas, os muitos ambientes evocados em cada verso, os contrastes, todo o drama entre e vida e a morte, transpostos para música. Tudo ganha dimensão, tudo faz sentido, tudo vai ao encontro do mais íntimo de cada um, e tudo é belissimamente interpretado.
As sete últimas canções do alinhamento oscilam entre os anos de Kurt Weill em Paris, já no exílio, na década de 1930, e os derradeiros, com a sua consagração nos Estados Unidos. Aqui se encontram as belíssimas “Je ne t’aime pas” e “Complainte de la Seine”, ambas de 1934, sobre poemas de Maurice Magre, e “Youkali”, a ‘habanera’ vinda de “Marie Galante”, com libreto de Jacques Deval, estreada na capital francesa na viragem para 1935, aqui partilhada com a soprano Susana Gaspar (mais uma belíssima voz). Do período americano são ainda “Buddy on the Nightshift” (1942), sobre Oscar Hammerstein, “Speak Low”, sobre Ogden Nash, do musical “One touch of Venus”, de 1943, e “September Song” (1938) e “Thousands of Miles” (1949), ambas sobre Maxwell Anderson, esta última composta para “Lost in the Stars”, a derradeira criação de Kurt Weill para os palcos da Broadway, a um ano da sua morte.
O fecho do álbum – que teve origem num recital ao vivo dos dois músicos – deixa no pensamento (durante muito tempo) os versos finais de “Speak low” e, com eles, a inevitável memória de anos chave da vida do compositor, que são também anos determinantes do século XX e da história da humanidade. E só grandes obras e grandes interpretações o conseguem.
O sentimento estende-se ao cancioneiro de Fernando Lopes-Graça, empreendido por Nuno Vieira de Almeida. Ricardo Panela e Susana Gaspar são os coprotagonistas deste segundo volume, num programa que se cruza com o tempo de Kurt Weill, e prossegue depois pela última parte do século, que o compositor alemão não viveu.
Lopes-Graça é um dos mais importantes compositores portugueses e o seu “livro de canções” é extenso, conjugando diferentes géneros, dos arranjos sobre melodias tradicionais, à abordagem da poesia portuguesa e à produção de caráter político, com uma óbvia preocupação humana e histórica. Todas esses géneros estão patentes neste segundo volume, que inclui canções populares gregas, checas e eslovacas, de 1950-51, a poesia portuguesa da Presença – José Régio, Afonso Duarte, Carlos Queiroz –, com a qual contactou em Coimbra, no início da década de 1930, antes da partida para Paris, o ciclo sobre Rabindranath Tagore, do final dos anos de 1920, que reflete a proximidade a Debussy e à música francesa, na fase inicial da carreira, e as três “Canções do 25 de Abril”, de 1975, de celebração pela queda da ditadura. No conjunto, são perto de 50 anos de canções, testemunhos do tempo e de uma vida. O musicólogo Paulo Ferreira de Castro assina o excelente e precioso ensaio que acompanha esta edição.