Já tinha visitado a Ericeira, terra que conhece bem, no livro de versos Quem Diremos Nós Que Viva?. Mas regressa agora, num romance, para ligar passado e presente, a vida de um fotógrafo exilado da Alemanha nazi e uma mulher, Marta Almeida, que procura obter informações sobre o avô paterno que nunca conheceu. Entre as duas personagens afirma-se um narrador que, como o leitor, descobre o enredo página-a-página. Nascido em Vila Real, em 1966, onde atualmente dirige a Biblioteca Municipal, Vítor Nogueira persegue, no romance, a confluência de vários géneros, na recusa da linearidade e do narrador omnisciente. Poeta com vários volumes publicados, tem, em Falésia, o seu segundo romance.
Jornal de Letras: Lembra, numa nota final, que os capítulos iniciais surgiram de versos seus, publicado no livro Cantochão. O que levou a este prolongamento na prosa?
Vítor Nogueira: O ponto de partida para os dois livros foi, na verdade, o mesmo. Também os escrevi em simultâneo. Houve matérias que me puxaram para a escrita em Cantochão e que pediram continuidade. Tudo parte da mesma angústia.
Em que sentido?
Desta angústia de se procurar alguma coisa dentro de nós para colocar no papel. No caso destes dois livros, tentei fugir de algumas balizas da minha escrita mais recente, que andava muito à volta das ideias de casa, da rua da infância, da rua onde cresci. E quando digo angústia estou a ser literal, porque sou daqueles escritores que sofrem, até fisicamente com a escrita. Sempre fui muito limitado em relação ao fluxo. Mesmo quando o resultado final não o mostra, não consigo sentar e tirar, como tantos conseguem, três ou quatro páginas seguidas. Arranco, a ferro, 100 palavras e depois outras 100, 200. Se isto for feito de uma forma metódica e disciplinada é possível, com tempo, afinar tudo. Procurar, assim, novos rumos, novas vozes.
Mas gosta deste ‘jogo’ entre poesia e prosa?
Sim. Venho saltitando entre poesia e prosa nos últimos tempos. E gosto, sobretudo, de ver o romance como o género dos géneros, o que inclui poesia, história, autobiografia. Vejo-o como fragmentos em arranjo caleidoscópico, com vozes, sempre as vozes, que para mim são fundamentais, sem elas nada se justifica. Esta conceção também me permite explorar a não linearidade, que me parece um espaço de construção fértil para a nova ficção portuguesa.
Essa ideia de pesquisa, enquanto autor, também transparece nas personagens…
Já no meu primeiro romance, Amanhã logo se vê, fugi à figura tradicional do narrador omnisciente. Neste romance, isso é feito, de algum modo, através da construção de uma técnica narrativa o mais cinematográfica possível. O narrador, tal como o autor, desconhece os estados de alma das personagens.
Por que escolheu a II Guerra Mundial como ponto central para este romance?
Tenho uma relação forte com a História, que está presente em vários livros. Mar Largo, por exemplo, é dedicado à história da construção do Rossio, obra de detidos na prisão que havia no Castelo de São Jorge. Mas interessou-me sobretudo o ping pong entre os anos 40 e a atualidade, numa terra, a Ericeira, que conheço muito bem. Não sei explicar porquê, mas nunca me agradou a ideia de escrever um livro de ficção inteiramente no passado. Prefiro a relação do presente com a história e o passado.
E a Ericeira, como a Figueira da Foz, esta com mais presença na literatura portuguesa, teve um papel fundamental durante a II Guerra Mundial.
Houve de facto, nessa altura, terras importantes para a receção de refugiados, às vezes em condições particularmente difíceis. Também podia ter ido para as Caldas da Rainha, se conhecesse bem esse chão. Gosto sempre de partir de um sítio em que me sinta confortável, até para levar a cabo a investigação necessária.
Alguma destas personagens são reais?
Não, pelo contrário. São das tais coisas que foram sendo arrancadas não sei bem de onde. Não há correspondência com personagens históricas, embora se baseiem em figuras e nomes, informações e dados que marcaram a Ericeira nos anos 40. O fotógrafo Otto Seelig, que foge da Alemanha, revela também o meu gosto pela fotografia e sobretudo pela arqueologia da imagem. É curioso pensar que, na história contemporânea, chega-se muitas vezes à informação (ou sua validação) através da fotografia. No seu caso, ainda resolvia uma questão importante no romance. É que, naquela época, os refugiados não podiam exercer as suas profissões legalmente em Portugal. Com um fotógrafo tudo se torna mais interessante e possível.