Este podia ser um capítulo das minhas futuras memórias, que nunca escreverei. Estou no ano de 1967: frequento o seminário do Espírito Santo, no Fraião, em Braga, desde há seis meses mal medidos. Os Dominicanos haviam acordado com a Ordem Missionária que os seus alunos ali frequentassem os dois últimos anos dos estudos liceais, após o que tomariam o hábito de noviços em Fátima, aí fazendo os primeiros votos e os estudos de Teologia. Mas a minha história com Ferreira de Castro começa uns anos antes. As bibliotecas itinerantes da Gulbenkian tinham-me dado a ler boa parte da sua obra. Vou eu, e atrevo-me a escrever-lhe, a dizer-lhe quanto admirava os seus livros e a sua glória de escritor traduzido em dezenas de línguas e universalizado como português e “brasileiro” de torna-viagem. A carta teve de ser entregue aberta, antes de ir para o correio, a fim de ser lida e censurada pelo prefeito da semana.
Já no Fraião, quem me chama a capítulo é o reitor, um Pires avermelhado e rotundo, que estranhou o atrevimento: um seminarista a escrever a um escritor famoso não devia ser boa coisa. Que lhe queria eu? Corei até aos pés, a ponto de se ter apiedado de mim e de suavizar a reprimenda. Condescendeu até que podia não ser mau de todo isso de eu me corresponder com ele. Trata-se de um grande escritor, mas ateu: tens no mínimo a obrigação de tentar convertê-lo à fé de Deus. E lá assentámos em como eu o salvaria do inferno! Entre inferno e paraíso decorreu essa relação epistolar. Um dia, recebi uma resposta (aberta e lida pelo Pires), a agradecer-me a admiração. Era o início de uma amizade. Não só respondeu como pôs os livros à minha disposição. Para um ateu, não estava nada mal em matéria de humanidade! Tomara muitos cristãos, disse-me o Pires, que via no caso um sinal da vontade de Deus quanto ao meu papel junto do ateu. Na carta seguinte, abri a alma, num êxtase, ao elogio do homem e do escritor. E outra vez o Pires: que era tudo um exagero da minha parte; não se tratava de pôr mais um santo no altar; quem precisava de conversão era eu!
Um dia, chegou à Achadinha uma arca naufragada com livros dentro: toda a sua obra, com dedicatórias longas, rasgadas, elogiosas, que aludiam ao meu belo espírito, de que há muito a esperar. Tomei-as a sério, pura ingenuidade! E toca de lhe escrever umas laudas magníficas e asseverar que também tinha vocação literária. Não resisti a enviar-lhe uns poemas horrendos, que elogiou na volta do correio propondo-me que lesse muito, escrevesse todos os dias, acreditasse nas minhas faculdades. Encontrara o cúmplice, o confidente, o confessor. E não tardei a depositar nas mãos dele o mais perigoso dos meus segredos de então: em crise de fé, não sabia se queria ser padre. Fosse ele a dizer-me que fazer da vida – sair do seminário, aguentar até fazer estudos ou provocar uma grande e tremenda revolução? A carta não pôde ser entregue ao prefeito da semana: eu seria logo expulso. Saltei o muro, estrada abaixo até Braga, ao marco do correio: nele depositei a secreta missiva e voltei pelo mesmo caminho. Essa aventura do muro e da cidade passou a encorajar-me para vicissitudes mais graves. Tornei-me líder das fugas para Braga, onde grupos de aventureiros me seguiam nas incursões noturnas. Íamos ver e andar, beber e fumar, encantar a vista e alvoroçar o coração com as mulheres da cidade. Isso significava uma zona de risco, uma rutura com o seminário que nos punha na iminência da expulsão. Já então nos consideravam revolucionários (e benziam-se, à simples invocação da palavra!).
Fui logo apodado de ateu e subversivo político, recebendo ordem de expulsão para o mundo (vais-te já embora lá para o mundo! – significando ele a minha perdição). Antes disso, há a resposta de F. de C. ao pedido de conselho sobre o meu destino: deixar o seminário ou manter-me ao leme da contestação – contra tanta disciplina, tanto cerco do pensamento, tanto sufoco espiritual. Enredado num dilema de consciência, o escritor tardou mês e meio a responder: que não podia aconselhar-me a ficar nem a sair; que essa teria de ser uma decisão pessoal, só minha, e que não ia arcar com tal responsabilidade a meu respeito.
Chamou-me o Pires de novo à sua presença: que conversas eram essas entre mim e o escritor, que não se lembrava de ler nada, escrito por mim, sobre ter ou não vocação para o sacerdócio, nem sobre a hipótese de abandonar a vida religiosa. O Pires queria de mim uma confissão, uma certeza que me denunciasse ao seminário de onde viera, o qual não deixaria de ponderar o caso e decidir expulsar-me. Lembro-me muito bem de como me aconteceu essa expulsão de Braga, no Fraião. Chegou o meu ex-diretor, um homem atlético, de grandes mãos, muito bem penteado, a popa lá no alto da testa com duas entradas laterais, os olhos negros, intensos. Deu uma volta connosco, para saber como estávamos, como nos íamos dando com os do Espírito Santo, e se havia algum problema de maior. Alguém aludiu à falta de liberdade, à vigilância doentia a que éramos sujeitos, num seminário tão diferente do nosso. Pareceu apreensivo com a missão que ali o trouxera. Depressa compreendemos que não se tratava de uma visita, como as que nos fazia mês após mês, a saber da nossa adaptação. O fim era outro. Vi-o daí a pouco, quando mandou os outros regressarem à sala de estudo e me disse a mim para ficar, pois precisava de falar-me em particular. Curvou-se para a frente, a fim de parecer mais pequeno, pregou os olhos no chão, deixou correr o silêncio necessário até ganhar coragem e anunciar que viera a mando do Provincial, o superior hierárquico, com ordens para que eu fizesse as malas em vinte minutos, não me despedisse de ninguém e viajasse com ele até Coimbra: aí tomaria um comboio para Lisboa, depois um barco para os Açores e para a casa dos meus pais. Não ficaria nem mais um dia, nessa condição de elemento nefasto, que a todos contaminava com as ideias políticas, contra o regulamento e a disciplina do Fraião. Não só perdera a vocação como me convertera num ateu e num subversivo!
Não cabem aqui as humilhações a que fui submetido no convento de Queluz de Baixo, onde me acolheram até que um barco me levasse de vez para os Açores. Trabalhava de sol a sol na quinta, a enxadar, mondar, carregar terra e pedras de um lado para o outro – pois já não pertencia à Ordem e tinha de ganhar o meu sustento com trabalho. À noite, o padre provincial, que mandara expulsar-me, ocupava-me a ordenar papéis, correspondência, as estantes caóticas da sua biblioteca, armários desarrumados – deixando-me exausto, apartado dos mesquinhos prazeres e reduzido ao silêncio conventual e a passos noturnos que soavam vindos do outro mundo.
Arranjei maneira de escapulir-me do convento, indo ter com quem me ajudasse a ficar por Lisboa e a escapar ao barco que me levaria de volta ao campo e às vacas do meu pai. Arranjara um trabalho camarário, tornara-me autónomo, e adeus vacas e ilhas. Logo que encontrei um poiso, telefonei a Ferreira de Castro. Exultou com a minha expulsão. Vimo-nos na pastelaria Veneza, onde sustentava uma tertúlia política e literária. Nela vim a conhecer Assis Esperança, Roberto Nobre, Alexandre Ferreira, Orlando Gonçalves, poetas, artistas, anarcas, conspiradores contra o Salazarismo.
Encontrei em F. de C. e no seu amigo Assis Esperança os pilares da minha relação com a literatura e o jornalismo, e uma via da oposição à Ditadura. Queria conspirar, correr riscos, ser preso, tornar-me herói ou mártir do regime – e vingar os equívocos do passado, insubordinar-me contra a ordem, a censura à imprensa, a guerra colonial, a pobreza, a emigração, o colonialismo. O escritor habitava então uma suite do rés-do-chão do hotel Mira Parque. Os seus livros enchiam as montras das livrarias, os jornais falavam de traduções, da candidatura ao Nobel (com Jorge Amado), tomada a sério por muitos – e por ele nem por isso. Quando precisava de terminar um livro, retirava-se para a Madeira, hospedando-se durante meses num hotel e regressando de lá com uma pasta preta carregada de mistérios literários. Como era surdo, julgavam-no desconfiado e manhoso como a raposa – apesar de humilde e fraterno. Abominava padres e freiras, não tanto pelo que eram, mas por sustentarem o modelo social e político do mundo. Para escrever A Missão, contou-me que fora encontrar-se com uma comunidade religiosa, para ficar a saber como é que os padres se tratavam entre si. Tinha um medo pavoroso da morte, fim absoluto de tudo, matéria sobre matéria, lama sobre a terra. Na sua relação com os pares, eu estranhava o excesso dos elogios a todos, sem exceção. Louvava-os como se recuasse dentro de si, a esconder-se da fama e da vida que os livros lhe davam num país onde ninguém (exceto Namora) vivia dos direitos de autor. Línguas maldosas diziam que os exaltava só para que não dissessem mal dele – o que eu levava na conta de uma infâmia. Aduziam outros que possuía um ego maior que a légua da Póvoa; que, escrevendo mal, fora projetado no exterior por bons tradutores, como Blaise Cendrars, em francês, língua a partir da qual se fizeram traduções para outras línguas.
Recusei-me a crer nessas minudências. Já não era então o meu primeiro ídolo literário: conhecera Urbano Tavares Rodrigues, cujos livros devorei, na ânsia de novos horizontes, e depois vários outros, à medida que publicava contos nos jornais. Mas permanecia meu mestre e mentor. Apostava no meu talento e na minha sensibilidade. Esperou o meu primeiro livro até à morte. Dediquei-lho postumamente: uns tristes contos que depressa bani. Vi-o morrer e começarem a esquecê-lo, tão injustamente como agora. Chegara uma revolução, a do 25 de Abril. Descarnados, os seus livros colidiam em silêncio com a nova liberdade literária, proclamada aos gritos, por entre o clamor da festa democrática. Hoje como ontem, tardamos em refazer a justiça a um escritor que nos anunciou o Neorrealismo, que inventou com dignidade e valentia, do lado dos que hoje comem e vivem melhor, mas nunca foram visitá-lo na sua sepultura na serra de Sintra, onde repousa sozinho entre as árvores, sob um banco onde qualquer um de nós pode sentar-se a descansar.