H. G. Cancela publicou o romance Impunidade no passado mês de maio. Em março tinha publicado o conjunto de ensaios O Exercício da Violência. A Arte enquanto Tempo, assinando Helder Gomes Cancela. Se o livro de ensaios se integra numa visão pós-moderna da história e das categorias intrínsecas à Arte e, porventura, resumirá as suas aulas de Estética na Faculdade de Belas Artes do Porto, Impunidade, romance que passou totalmente despercebido aquando da sua publicação, marca, sem dúvida, a revelação de um escritor cujo nome passará doravante a contar no atual horizonte do romance português.
H. G. Cancela já publicara outros dois romances: Anunciação (1999) e De Re Rustica (2011), bem como um livro de poesia (Novembro, 2003), livro com uma métrica estranha, no qual todos os poemas são constituídos por dois blocos de três versos intervalados por um verso deslocado espacialmente.
De facto, face aos dois romances anteriores, Impunidade atinge uma forte maturidade estética, expressa sobretudo na coesão narrativa entre as quatro personagens principais (pai, mãe, filhos) e na descrição do conteúdo do tempo através do pormenor circunstancial (ir ao supermercado, passear no jardim, alojamento em pensões, viagens, contactos com criada e Amir, filho desta…). Neste sentido, em termos de espaço enclausurador das personagens e do léxico urbano usado, o romance de H. G. Cancela tem muito a ver com as narrativas de Jaime Rocha, e em termos de léxico e de sentido pulsional de acção encontra fortes afinidades com a obra romanesca de Rui Nunes.
Impunidade, a história de um incesto consentido e voluntário entre dois irmãos, que frutifica em dois filhos, um rapaz de 9 anos e uma menina de 4, decorrida sobretudo em Sevilha, obedece a cinco linhas narrativas principais, que constituem, ao mesmo tempo, a marca de água deste autor no panorama da literatura nacional de hoje:
1) Manifesta e descreve um universo narrativo claustrofóbico: a maior parte da ação, violadora das regras morais habituais, decorre num apartamento em Sevilha, para onde a quase totalidade da ação converge;
2) Utiliza abundantemente uma linguagem carnal e deveras sensual: a descrição de partes do corpo transforma estas em lugares sensuais para o voyeurismo do leitor, aceitação das pulsões instintivas do corpo como guias dominantes da ação e não as regras morais habituais;
3) O sentido geral da linguagem carnal obedece a um horizonte semântico de abjeção: descrição de sujidades, manchas, imundícies, desarrumações, desordem, comportamentos perversos (violentação da menina de 4 anos por Amir, uma criança meio marroquina, meio espanhola, de certo modo abandonada pelo pai, que, mais do que a regras morais e sociais, obedece a pulsões instintivas do corpo, transgredindo as ordens da mãe);
4) A abjeção como sentido da ação (ou da descrição e narração da acção das personagens) é compensada por instantes luminosos de lucidez do narrador, que, nómada, ora aqui, ora ali, entre Portugal e a Andaluzia, nada espera dos outros senão um jogo de forças compensatórias e relações circunstanciais: avança para o outro recuar; recua para o outro avançar; simula iniciativa para o outro se tornar passivo, evidenciando uma nietzschiana manha animal;
5) O experimentalismo literário, sobretudo nos romances de 1999 e 2011, porventura necessidade de uma envolvência filosófico-estética legada à literatura. Narrativa que despreza valores morais transcendentes e permanentes, instaurando a adaptabilidade social elástica (jogo de forças) como sobrevivência do homem, Impunidade revela um autor cujo nome, doravante, deverá contar nos balanços literário.