Uma casa vazia. É essa a primeira memória que João Nicolau tem de Telheiras, o bairro lisboeta para onde os pais decidiram ir viver nos anos 80, quando o realizador tinha 10 anos. “Lembro-me de os meus pais irem ver a casa e do bairro ser um sítio ainda muito inóspito. Tudo o que hoje é relva ou ajardinados era terra batida e não existiam muitos prédios”, recorda, hoje com 40 anos, numa das esplanadas da emblemática “rua dos cafés” de Telheiras. Aos olhos de uma criança, a mudança para um bairro em construção estava longe de ser um problema: “Era maravilhoso porque havia muitos terrenos baldios, inclusive com cabras a pastar, lembro-me de vermos cobras enquanto brincávamos e ficarmos todos contentes”.
John From, a segunda longa-metragem do realizador (agora em exibição), mostra o bairro como ele é hoje, com mais prédios, mais árvores, mais automóveis (um deles mágico…). Mas o vazio continua lá, enquanto peça importante da narrativa, uma vez que a ação se desenrola em pleno mês de agosto. E se há adjetivo que assenta bem a um bairro lisboeta durante as férias grandes é… vazio. Rita, interpretada pela atriz Júlia Palha, tem 15 anos e vai ocupar as férias com os seus delírios de paixão por um novo vizinho, um fotógrafo divorciado (Filipe Vargas), autor de uma intrigante exposição inaugurada no centro comunitário do bairro sobre a Melanésia (região da Oceânia que inclui territórios como as Fiji, Nova Guiné, Ilhas Salomão ou Vanuatu). Um enamoramento que Rita irá viver com a intensa cumplicidade da melhor amiga, Sara (Clara Riedenstein) e, claro, do bairro onde vive que, às tantas, é envolvido na fantasia da Melanésia, tornando-se num destino exótico dos antípodas.
A origem do nome do filme é um culto existente no Vanuatu, uma das ilhas da Melanésia, com o nome de John Frum, provavelmente uma corruptela de John from (America), um norte-americano que terá chegado à ilha nos anos 30 do século passado e que ainda hoje é celebrado como fonte de prosperidade.
Em John From, Telheiras torna-se universal, tão universal quanto os enleios dos amores e amizades juvenis. Assumindo-se, até, como parte de um ritual de passagem para além da adolescência.
O pensamento mágico anda à solta e o bairro é cúmplice de todos os segredos. Porque as paixões inesquecíveis não precisam de ser espalhafatosas.

O graffiti desta fotografia reflete a crença de João Nicolau na singularidade do bairro a nível nacional
Campiso Rocha
Qual é a primeira memória que tem de Telheiras?
Lembro-me de os meus pais virem ver a casa e do bairro ser um sítio ainda muito inóspito. Tudo o que hoje é relva ou ajardinados era terra batida e não existiam muitos prédios. Digamos que era um bairro ainda em construção. De certa maneira, para nós, crianças, era maravilhoso porque havia muitos terrenos baldios, inclusive com cabras a pastar, lembro-me de vermos cobras enquanto brincávamos e ficarmos todos contentes. Havia muitas crianças porque a geração dos meus pais procurou, aqui, um espaço para ter filhos, onde eles pudessem andar à vontade. Digamos que essas foram as primeiras memórias.
Depois de ter filmado aqui a curta-metragem Rapace (Grande Prémio do Festival de Curtas-Metragens de Vila do Conde, em 2006), como é que foi voltar a filmar num sítio que conhece tão bem?
Quando escrevo argumentos tenho logo cenários em vista, muitas vezes, só para me inspirar e facilitar a escrita. Esses cenários, depois, podem ser substituídos, isso já aconteceu em alguns filmes. Felizmente, neste caso, não foi preciso. Mas o filme não é de todo autobiográfico, o que me interessava era usar um espaço o mais delimitado possível. Este bairro, como foi dos poucos planeados, tem algumas características, sobretudo arquitetónicas e espaciais, que lhe dão uma linguagem, aproximando-o do que é ser um personagem.
Como é que se torna um bairro em personagem?
O filme fala por si, eu não me posso nunca substituir ao filme. Este é, provavelmente, o bairro de Lisboa com os prédios mais separados uns dos outros, o que para a ideia de algum isolamento que há no início do filme facilitava muito em termos de imagem. Mesmo filmando em agosto, tivemos que suar as estopinhas para conseguirmos quadros sem pessoas a passar, que era uma coisa que me interessava muito. A nível arquitetónico, este bairro foi pensado como sendo de habitação social, por isso é que tem muitos prédios com galerias, em que as pessoas só quando entram na própria casa é que deixam de se ver umas às outras, ou seja, foi tudo pensado para as pessoas estarem em contacto. Essa era outra característica importante. Depois, há aspetos mais técnicos: o facto de haver tantos espaços abertos permite mais cambiantes de luz e nós filmámos em película usando o mais possível a luz natural. Mas há uma grande diferença natural entre 2014, quando eu filmei, ou 1985, quando eu vim para aqui: a arborização. Estas árvores não crescem em dois anos, foram precisos vinte e tal anos para crescerem. Hoje, Telheiras é dos bairros residenciais mais arborizados de Lisboa.
O bairro tinha mais coisas que lhe interessavam para esta história?
Outro aspeto que me interessava era este ser um local onde as crianças e os jovens ainda circulam muito. Aqui ainda se veem crianças a andarem de bicicleta. No caso das crianças isso é mais visível do que noutros bairros, onde os pais não podem deixá-las sozinhas na rua porque não há passeios. No caso dos jovens, por causa desta rua [dos cafés], há muitos que vêm de fora passar aqui a tarde ou a noite. Essa era outra característica que interessava para o filme, embora eu me tenha desembaraçado o máximo possível de referências sociais ou sociológicas. Quando eu mostro este filme em Espanha ou Itália é um bairro residencial e ninguém se questiona. Houve uma utilização muito funcional do espaço, apesar de eu não querer, nem poder fugir à minha biografia, foram as características funcionais do bairro que me fizeram querer explorá-lo e não razões emocionais.
O filme é sobre a paixão adolescente, podemos dizer que é algo tão universal como a “vida de bairro”?
Curiosamente, tal como aconteceu com o Rapace, o facto de o filme ser muito localizado fala muito a pessoas noutros sítios. Já mostrei o filme no México e no Brasil, que são quadros mais distantes, e ele fala às pessoas. O John From é, sobretudo, sobre a paixão amorosa, sobre o momento em que ela nasce, a lógica, as transformações… Escolhi ambientá-lo na adolescência porque é um período em que as coisas são vividas de uma forma muito intensa e também porque é uma altura em que a maior parte das pessoas tem toda a disponibilidade para se dedicar a essa viagem. Também por isso quis ambientar o filme nas férias para a Rita nem sequer ter aulas. A questão da adolescência acaba por ser quase uma falsa questão porque a adolescência não é estanque, estas lógicas e estes momentos, obviamente com códigos diferentes, acontecem-nos durante toda a vida.

É a segunda vez que João Nicolau filma o bairro onde cresceu. A curta-metragem Rapace também foi rodada em Telheiras
Campiso Rocha
O bairro também funciona como um ritual de iniciação?
Há uma cena no filme em que a amiga, a Sara, vai para o festival de Paredes de Coura, e a Rita decide ficar cá, para ficar perto do Filipe, depois sai-lhe o tiro pela culatra… E ela faz um passeio noturno, aí interessou-me mostrar esta rua dos cafés completamente cheia, mas por oposição ao isolamento dela. Eu acho que há aí algo de passagem nessa sequência em que ela se passeia pelo bairro, em que o bairro, que é uma fonte de recursos para ela, se apresenta como uma coisa mais árida e desinteressante só porque ele não está cá. Tanto que depois essa sequência acaba com ela em casa e a mãe está a ver um filme em que um homem bebe sozinho no balcão que, digamos, está a substituir aquilo que ela ainda não faz, pelo menos sozinha.
Também faz parte das suas memórias ver o bairro vazio e despojado como vemos no filme?
Felizmente, tive oportunidade de passar muitos verões fora de Lisboa. Mas à medida que a adolescência se aproximava também já era um prazer estar aqui durante as férias e, nesse sentido, era quase uma adolescência clássica, em que os pais saíam de manhã para ir trabalhar e o bairro ficava só com crianças e adolescentes. Isto era literalmente nosso. Chegávamos a organizar torneios desportivos e coisas assim… Esse vazio é que permitia que pudéssemos estar todos na rua, em segurança e em paz. Os espaços vazios funcionavam mais como atração do que propriamente como um elemento opressor.
Faz vida de bairro?
Sim, até porque agora tenho um filho e essa vida impõe-se. Apesar de estar muitas vezes fora, como não tenho um trabalho das 9h às 5h, quando estou cá fico por aqui. Este é um sítio com bastante vida de bairro. Agora que há alguns jardins tem bons sítios para passear, para estar com as crianças, e as pessoas acabam por estar em contacto, e isso é bom. Digamos que há um conjunto de estruturas que facilitam a vida de bairro.
Acompanha as iniciativas do bairro?
Acompanho, até porque é difícil não dar por elas, e até tenho prazer em envolver-me. Este filme, por exemplo, vai passar no Festival de Telheiras, agora em maio. Aliás, tivemos uma ótima colaboração das entidades daqui para a realização do filme, sem a qual não teria sido possível fazê-lo.
O que é que mais gosta no bairro?
Gosto do espaço. O facto de ter muito espaço entre os edifícios é uma coisa que a mim… Eu também vivi quase oito anos na Graça, numa ruazinha onde também gostei imenso de estar, mas vivia no primeiro andar de uma rua estreita e não tinha luz… A luz é quase um fator físico-químico para o meu bem-estar.
O que é que podia ser melhor?
Há um problema evidente que é a sobrelotação de carros. Isso tem a ver com o facto de Telheiras ser uma estação [de metro] terminal e há muita gente que deixa aqui o carro durante o dia. Mas mesmo durante na noite já se percebeu que há mais carros. Essa também é uma grande transformação relativamente à minha infância e adolescência, não era de todo assim. Para além disso, não vejo grandes coisas a melhorar porque há infraestruturas e com o metro a acessibilidade ao centro é muito rápida, eu não tenho necessidade que seja mais rápida do que é, pelo contrário…
É bairrista?
Sinceramente, acho que Telheiras é mais do que isso. Digamos que o que está em causa não será tanto o confronto com outros bairros, mas quase com a ideia de Portugal. Isto é uma ilha que quase poderia tomar as proporções de uma República. Gosto muito de um graffiti que diz ‘Portugal fora de Telheiras já’. Muitas vezes, fala-se dos aspetos suburbanos de Telheiras, mas acredito que pelas suas características, este é o primeiro bairro ‘sobreurbano’. O prefixo [sobre] denota uma elevação em relação ao resto da cidade e não uma situação de inferioridade.

Por um bairro melhor é a iniciativa que une a VISÃO, SIC Esperança e a Comunidade EDP em busca dos vizinhos mais ativos do País. Participe, dê ideias, contribua. Tudo por um bairro melhor.