Ir à mercearia a dois passos de casa, levar os miúdos ao parque ao final da tarde ou perguntar no café se a D. Clotilde já regressou do hospital. Tudo isto faz parte da vida de bairro, aliás, de um bairro com vida. Não surpreendem, assim, as palavras que João Seixas, urbanista, começa por associar à ideia de bairro: escala humana. “Há um sentido de comunidade, mesmo que as relações pareçam frágeis ou quase inexistentes, existe um entendimento comum por vezes silencioso, outras vezes muito ruidoso sobre o que cada um entende sobre um território enquanto bairro”, explica o docente da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Promover esse sentido de comunidade é o alvo do desafio lançado pelo projeto Por um Bairro Melhor.
Será inevitável dizer que “o bairro são as pessoas”? Afinal, foi essa a resposta mais ouvida pela investigadora Filipa Ramalhete, do Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território, da Universidade Autónoma de Lisboa, no âmbito do estudo Bairros em Lisboa, apresentado em 2014. “As relações entre a vizinhança, apoiadas no comércio local onde as pessoas se cruzam, parecem estar sempre presentes na conceção de bairro dos residentes”, constata a docente, que apelida os bairros de “unidades emocionais” (relacionadas com um sentimento de pertença, que nem sempre tem correspondência administrativa). Não é difícil associar os bairros a emoções fortes. Basta pensar na rivalidade que anima as marchas populares da capital ou na necessidade vital de saber o motivo do divórcio dos vizinhos do 5º esquerdo…
PROXIMIDADE Q.B.
As histórias mal contadas, “que se completam através da imaginação e dos rumores”, são centrais no romance de estreia de Bruno Vieira Amaral, As Primeiras Coisas (Quetzal, 2013), vencedor do Prémio José Saramago do ano passado (entre várias outras distinções). O livro é uma homenagem romanceada, claro está ao lugar onde cresceu o autor, o bairro do Fundo de Fomento, no Vale da Amoreira, distrito de Setúbal. Aos 37 anos, Bruno Vieira Amaral constata que muito mudou no bairro da sua infância, e em muitos outros: “Antigamente, as casas dos nossos vizinhos eram quase uma extensão da nossa, e até da família, as pessoas que nos viam a brincar na rua sabiam de quem éramos filhos. Hoje isso já não acontece”. O que não significa que os bairros estejam em vias de extinção. O investigador João Seixas não duvida que, atualmente, assistimos a um regresso ao bairro: “A sociedade portuguesa tem cada vez mais consciência da importância da qualidade de vida urbana, o que acaba por valorizar a vida de bairro”. Filipa Ramalhete corrobora: “Mesmo a nível internacional, existe a noção de que os problemas têm de ser resolvidos com proximidade, e que essa é a melhor escala para gerir a cidade”. De acordo com a investigadora, é inevitável (e saudável) que os bairros estejam em permanente transformação, mas “há que encontrar um equilíbrio para que a mudança não seja tão abrupta ao ponto de destruir o que já lá está”, aconselha.
BAIRROS SOB AMEAÇA
Em Lisboa, a “febre hoteleira” tem causado inquietações no bairros históricos. Na semana passada, a empresária Catarina Portas criticou nas redes sociais a inauguração de (mais) um restaurante de fast-food no Chiado, e a crescente descaracterização da cidade, dizendo que quando as publicações de turismo lhe pedirem sugestões de locais para visitar gostaria de referir a Loja da Fábrica de Sant’Anna ou a discoteca Jamaica, mas estão ambas “em processo de despejo para dar lugar a um hotel”… O urbanista João Seixas deixa o alerta: “Se um bairro deixar de ter vida quotidiana, podem continuar a chamar-lhe bairro, mas intrinsecamente já não o será. As funções de um bairro, os cafés, o comércio, o espaço público, até os tuk-tuks, devem ser utilizados por todos”. A multifuncionalidade do bairro é, aliás, uma das características mais valorizadas pelos residentes, de acordo com o estudo coordenado por Filipa Ramalhete. “O bairro ter tudo numa escala de proximidade é muito importante para quem lá vive”, refere a investigadora. Se o bairro são as pessoas, e as relações entre elas, também são a habitação, as escolas, o centro de saúde, os jardins, a esquadra da polícia, o lar de idosos ou o comércio “dificilmente alguém se sente num bairro se tiver que apanhar o metro para comprar uma pacote de leite”, constata João Seixas.
Um bairro pode ser, também, definido por uma biblioteca, como aquela que mudou a vida de Bruno Vieira Amaral, inaugurada em Vale da Amoreira quando o escritor tinha 12 anos. “Não quero fazer nenhum discurso neorrealista”, avisa, “mas o facto de não ter muitos livros em casa e de passar a poder levá-los para casa durante duas semanas foi como abrir o cérebro e começar a pôr coisas lá para dentro”, confessa. “Aquilo que eu sou foi muito marcado por aquele lugar, aquelas pessoas, as relações entre elas, a vida naquele bairro”, afirma, antes de recordar a origem do título do seu romance: “Foi ali que eu vi as primeiras coisas”. Afinal, os bairros também são feitos de memórias.
Por um bairro melhor é a iniciativa que une a VISÃO, SIC Esperança e a Comunidade EDP em busca dos vizinhos mais ativos do País. Participe, dê ideias, contribua. Tudo por um bairro melhor.