Jaime Barroso, 57 anos, foi surpreendido pela guarda fiscal com uma caixa cheia de guizos para bebés. Só na esquadra, quando a abriram, descobriu o que levava a carga. Não chegou a aquecer o lugar atrás das grades – deixaram-no ir, mas ficaram-lhe com os brinquedos.
A Caravana Visão passou em Tourém, terra de contrabando. A aldeia, com o passado bem conservado nas casinhas de pedra, situa-se no Parque Nacional Peneda-Gerês e pertence ao concelho de Montalegre. É quase um enclave, rodeado de Espanha por todos os lados, exceto pela estrada que a liga ao município.
À primeira pergunta, responderam-nos logo em galego. À segunda, já ouvimos o português, mas muito mestiçado com uns “xes” e palavras como “mercancía” (mercadoria) ou “callos” (dobrada). Não admira: há muitos casamentos mistos e a aldeia galega de Randín fica já ali ao lado.
Jaime foi contrabandista contratado pelos comerciantes da zona. Metia-se pela serra, ora de madrugada ora à noite, e andava um total de cinco quilómetros (ida e volta) com a “mercancía” às costas ou carregada por um burro. “Ia lá buscar as coisas por atacado: vacas, colmeias, colchões, bacalhau, azeite, bananas, marisco. De cá, os espanhóis queriam roupa, têxteis do lar e televisões”, conta.
A guarda sabia bem quem eram os contrabandistas, mas costumava fechar os olhos. Jaime foi apanhado por causa de uma história de vingança. “A guarda espanhola era bem pior, tinha má índole. Uma vez puseram o meu pai a segurar uma peseta com o nariz, contra a parede. E, de vez em quando, lá ia uma chicotada”, recorda.
Junto ao marco da fronteira (uma bloco de pedra com a letra P), Jaime lembra-se de como ganhava bem: 1200 pesetas (7,2 euros) por cada transporte, isto no final dos anos 80. “Nenhum funcionário público tirava este rendimento”, acrescenta Paulo Barroso, presidente da Junta de Freguesia de Tourém.
Até à abertura da fronteira, em 1990, assim se viveu na raia. “Depois levámos um estalo, ficámos abanados”, adianta Jaime. Lá se foi o ganho. Felizmente, tinham a agricultura e o gado… depois vieram os subsídios europeus.
António Soeiro, 82, ainda foi a Espanha algumas vezes, mas concluiu que aquilo não era vida para ele. “Tínhamos de esperar que viessem os espanhóis e ficávamos ali ao frio e à chuva. Eu tinha gado e desisti – é melhor trabalhar de dia e dormir descansado à noite”, considera.
À noite, pela serra, jogava-se o jogo do gato e do rato, sempre à coca para fugir à guarda fiscal. “Aqui vivíamos apertados, passávamos fome. Só comíamos o que dava a terra e ir a Montalegre, naquele tempo, era um dia de caminho, a pé. Então íamos a Espanha comprar azeite, pimento… mas não era barato”, continua António.
Na serra, jogava-se ainda outro jogo: o do câmbio. O comércio ilegal fazia-se tendo sempre em conta o valor do escudo e da peseta. Aí surgiam as grandes oportunidades, como quando Jaime Barroso encheu as aldeias galegas do Gerês de aparelhos de televisão.
Agora, essas aventuras não passam de memórias na aldeia de Tourém. Memórias que atraem turistas, em agosto, quando se representa a noite do contrabando, uma encenação realista do que ali acontecia. Ainda com os mesmos protagonistas.