O mercado de arrendamento a custos acessíveis em Portugal é uma miragem e um problema insolúvel? Não, forçosamente. Jorge Malheiros, investigador do Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa, defende a expropriação de imóveis devolutos e a mobilização de todo o parque habitacional do Estado como solução para reforçar significativamente a oferta e nivelar os preços do mercado.
Com vasto trabalho académico publicado no domínio das migrações, demografia, exclusão social e habitação, o geógrafo lança um olhar sobre o estado da habitação em Portugal em momento de pandemia e o que poderá acontecer quando esta terminar.

Na sua opinião e tendo em conta a pandemia, diria que o Governo está a dar a resposta adequada no setor da habitação?
Em relação às necessidades estruturais de habitação que se agravam com a pandemia, eu diria que ao nível das medidas emergenciais para habitação foram dadas respostas interessantes. Não são plenas, são transitórias mas são boas. O facto de se existirem moratórias no pagamento das rendas ajudou a conservar as habitações e a assegurar que as pessoas não fiquem desprotegidas. Porém, há riscos que já se alertavam há algum tempo e que irão emergir neste período de pós pandemia. Existem impactos que não estão resolvidos e ainda não se sabe o modo como muitos irão conseguir resistir a esta fase pós-pandémica se estiverem em situações de perda salarial, em situações de desemprego e lhes começaram a exigir pagamentos daquilo que ficou por pagar por via das moratórias. Neste momento vivemos o efeito bolha e só depois é que vamos ver o que acontece.
O que pode ser feito para evitar o caos, terminado o período das moratórias?
O Plano de Recuperação e Resiliência dá uma atenção importante à habitação e isso é muito positivo. De resto, num contexto mais estrutural é importante que a questão da habitação tenha conquistado lugar quer na agenda política, quer na agenda pública, e mesmo antes das moratórias. Em relação às moratórias, o que me parece é que vai ter de haver uma negociação, com o apoio do Governo, que envolva a banca, os pequenos operadores, os arrendatários e os senhorios, para que a reposição da normalidade se faça de uma forma faseada. E isso é um aspeto muito significativo – que faseadamente se volte a uma situação de regularidade no que diz respeito aos pagamentos das rendas, dos empréstimos, etc.
Depois tem de haver da parte dos poderes públicos uma mitigação deste processo. Isto é, por um lado os privados (como a banca) deveriam reduzir alguns dos custos que estão a ser pedidos às pessoas e, por outro lado, o Estado deveria apoiar os vários operadores reduzindo, assim, o impacto negativo que isto possa ter. Nós sabemos que as rendas sejam estas habitacionais, as do comércio ou na pequena hotelaria, podem ter um peso importante nos gastos fixos. Eu creio que deve haver aqui algum apoio no relançamento destas atividades económicas (e também apoio aos arrendatários e senhorios) para reduzir o impacto desses valores que tinham sido suspensos e que em breve terão de ser pagos.
É sabido que existem 700.000 imóveis devolutos no país. E também se sabe que o Estado vai poder expropriar imóveis no âmbito do Programa de Estabilização Económica e Social. Concorda com as expropriações?
A ideia da tomada de posse por um determinado período e não da transferência da propriedade não me parece incorreto. Se os proprietários não são capazes de reabilitar a sua habitação, se não são capazes ou não estão interessados em colocar a sua habitação no mercado eu acho que se deve acionar o princípio de necessidade social e utilidade pública, permitindo ao Estado substituir-se aos privados… Mas não concordo que exista transferência de propriedade mas sim uma tomada de posse que permita ao Estado gerir essa propriedade, reintroduzi-la no mercado e gerar com isso o combate à especulação reforçando a oferta em determinadas áreas, a preços justos e acessíveis. É claro que existem diferentes situações nestes 700 mil imóveis… Alguns podiam ser já colocados no mercado, outros são ruínas e precisam de uma completa recuperação. Mas o que é certo é que mesmo que não sejam os 700 mil, seja metade por exemplo, há um conjunto de património que está parado.
Portugal continua no radar dos turistas e há expetativas elevadas para o pós-pandemia. O que acha que poderá acontecer ao nível do Alojamento Local (AL)?
Eu creio que alguns dos programas já existentes e pensados deveriam ser alargados e depois sustentados com uma componente bazuca para a área da habitação. Ou seja, acho que se devem criar estímulos de tipo diverso para os proprietários privados de AL, acertando o discurso na lógica de sustentabilidade, com restrições ao número de unidades de alojamento local mas conjugando com mecanismos a nível fiscal, através de bonificações, por exemplo. Como aliás já estava a fazer a autarquia de Lisboa. E para quê? Para que se possa fazer alguma transição do alojamento local em determinadas áreas para o arrendamento residencial normal. Assim, seria possível reduzir esta componente especulativa de querer ganhar muito em pouco tempo.
Mas tem havido essa tentativa com o lançamento de programas como o Arrendamento Acessível ou a Renda Segura… O que acha que está a falhar nestes programas para terem tão pouca adesão?
Há alguma dificuldade em convencer os proprietários em colocar a sua habitação nestas bolsas e uma das razões para isso é que, muitas vezes, os proprietários funcionam com esta ideia dos preços de mercado… E portanto se estes valores estão abaixo do mercado há uma certa recusa em colocar a sua habitação na bolsa. Mas há outra questão: é um facto que nestes programas, o Estado assume uma compensação de valores mas é importante também que o Estado consiga mobilizar habitação de que dispõe de uma forma dispersa na cidade e que a recupere de uma forma integrada. E em diferentes frentes. Falo de todos os atores públicos que tenham habitação e de alguns atores do sistema social. Por exemplo, quando falamos de Lisboa e do Porto, temos as Câmaras Municipais como proprietários de habitação, mas também ministérios que são também proprietários de habitação, o Instituto Financeiro da Segurança Social, a Santa Casa da Misericórdia e ainda a Caixa Geral de Depósitos que é um banco 100% público. Ou seja, falo de uma mobilização de habitação pública de maneira a que nós consigamos ter uma percentagem já grande de parque habitacional, que uma vez no mercado, ajude a reduzir os preços. Se a oferta deste tipo de imóveis for muito pequena não existe efeito algum. É preciso mobilizar habitação pública que existe no mercado para garantir preços mais justos.
Como avalia a revitalização urbanística que aconteceu nos anos mais recentes em Lisboa?
Uma nota primeiro sobre a revitalização urbanística e a necessidade de intervenção nos espaços urbanos degradados na área metropolitana de Lisboa. Nós ainda temos bairros críticos nas periferias urbanas e que precisam de renovação. Ainda há cerca de uma vintena, ou talvez um pouco menos, de bairros degradados que ainda não tiveram uma resolução. Um caso emblemático é por exemplo a Cova da Moura ou Santa Marta de Corroios, no concelho do Seixal. E eu creio que se poderiam aqui fazer operações muito importantes de reabilitação urbana com as populações criando mecanismos de apoio e até a auto-construção ou auto-reabilitação apoiada, que poderiam ser muito interessantes. Quanto ao centro de Lisboa o que me parece é que há um défice nos processos de envolvimento dos cidadãos na procura de soluções de revitalização ou de qualificação urbanística. E a pandemia trouxe a discussão de um certo voltar a uma melhor vida de bairro integrando as experiências do teletrabalho. Eu diria que tem de existir um maior compromisso com as pessoas no sentido de com elas desenhar a reabilitação e a revitalização do espaço público. Temos de aprender a fazer mais com os cidadãos.
Há um ano, como elemento da Rede H – Rede Nacional de Estudos sobre Habitação, foi um dos 60 signatários de uma carta aberta endereçada ao Governo onde, entre outras coisas, se alertava para a necessidade de reforçar os instrumentos de proteção para acautelar o agravamento de situações de violência doméstica em contexto de confinamento. Diria que esse reforço foi feito?
A pandemia que deu origem ao recolhimento em casa não é vivida da mesma forma por pessoas que têm condições residenciais boas e as que não têm. Acentuaram-se mais as desigualdades que resultam das estruturas habitacionais das pessoas serem diferentes. E aqui de facto podia-se ter feito mais. Muitos estão em casas sobrelotadas, não têm um jardim privado e condições ideais para o exercício do trabalho à distância ou atividade escolar… A partir do momento em que as pessoas tiveram que ficar confinadas deveria, de facto, ter existido um melhor acompanhamento psicológico… Eu creio que os psicólogos só foram incorporados no processo de acompanhamento muito tarde e que as mensagens direcionadas para as pessoas através da internet ou da televisão ficaram por fazer. Na questão das tensões familiares, onde se inclui a violência doméstica sobre as crianças e as mulheres, também não houve um acompanhamento suficiente.
Tem acompanhado a temática da segregação residencial com base étnica. Os novos Censos vão permitir aprofundar esta questão?
Nos novos Censos vai-se tentar saber alguma informação sobre a origem das pessoas, o seu local de nascimento e dos seus ancestrais. E isso dá alguma informação mas está longe de nos dar mais informação sobre a segregação de base étnica, com base na cor da pele e do facto da cor da pele condicionar práticas discriminatórias e criar situações de desvantagem em relação a determinados grupos como acontece, por exemplo, com a etnia cigana ou a comunidade africana e de afro-descendentes. Pegando no exemplo das populações de Moçambique e de Angola, através dos Censos não conseguiremos distinguir, com base nos locais de nascimento, as pessoas que são descendentes de africanos negros, daquelas pessoas que são brancas e que nasceram em África e que os seus pais também já nasceram em África. Não será possível fazer este tipo de distinções. O que significa que a componente étnica ligada à discriminação não vão estar presentes. Em relação a população cigana ainda menos porque a população cigana maioritariamente nasceu cá, os pais nasceram cá e se calhar os avós e até os bisavós também.