É um dos arquitetos mais respeitados da nossa praça, com projetos emblemáticos como o Palácio Estói, no Algarve, o Museu Nacional Machado Castro, em Coimbra ou a torres Estoril-Sol Residence, junto à marginal de Cascais. Premiado dentro e além-fronteiras, Gonçalo Byrne tem, neste momento, não um desafio arquitetónico em mãos mas uma tarefa ainda mais ambiciosa: como candidato à presidência da Ordem dos Arquitetos, cujas eleições irão decorrer em junho, cabe-lhe dignificar uma profissão que apesar do estatuto é uma das mais mal pagas entre os licenciados e das mais precárias da sociedade portuguesa.
Um estudo da Ordem dos Arquitetos concluiu que Portugal é o segundo país com maior número de arquitetos per capita da Europa e também aquele onde estes profissionais são mais explorados – ganham um terço em relação aos seus colegas europeus e apenas dois terços do que os licenciados portugueses de outros cursos. Estas questões são muito antigas, tal como as queixas dos jovens arquitetos em relação aos falsos recibos verdes, etc… É um problema insolúvel?
A partir do final dos anos 80 houve uma explosão de licenciaturas, sobretudo com a abertura ao Ensino Privado Superior. E nessa altura apareceram mais de 20 faculdades de arquitetura privadas ou universidades com cursos de Arquitetura. E com uma grande concorrência entre as próprias escolas para aumentarem o número de alunos. Isso, de facto, levou a um crescimento muito grande de licenciados, o qual, à dimensão de Portugal, criou esse rácio que, ainda assim, está muito longe, por exemplo, da Itália. Lembro-me que há cerca de 20 anos a Itália tinha mais estudantes de Arquitetura do que a Europa toda junta! Isso provocou imensos problemas, uma enorme diversificação, a qual, de resto, também acontece em Portugal: temos imensos arquitetos que estão a fazer coisas que têm alguma relação com a Arquitetura, mas que não são propriamente projeto. Estão na curadoria, alguns até criaram clusters e criaram think tanks de investigação sobre produção de materiais novos… Há coisas extremamente interessantes. Portanto, não estão todos a fazer Projeto e isso é um lado positivo também. Depois há os que estão também na Administração Pública. De qualquer maneira, com a crise de 2008/2009 a frequência de Arquitetura nas faculdades baixou radicalmente, ao ponto de várias privadas terem encerrado e algumas públicas reduziram também o número de estudantes. Houve uma quebra, não tenho indicadores exatos estatísticos, mas hoje estamos longe dos tempos anteriores à crise de 2008/09.
Mas como se consegue solucionar a questão da precariedade, dos falsos estágios, a justa remuneração?
A questão da justa remuneração na Arquitetura é muito pertinente e tem mesmo que ser encarada de maneira pertinente. E aqui é preciso analisar o efeito cascata… A Administração Pública instituiu uma série de regras para a contratação dos serviços de projetistas, não só de Arquitetura, mas também de Engenharia. Dentro dessas regras há algumas formas de contratação de fazer concursos, mas curiosamente dentro dos vários modelos de concurso aquele que é usado à exaustão é o concurso de aquisição de serviços pelo mais baixo preço. E esse mais baixo preço, que tinha ainda uma barreira de um valor pré-determinado que permitia um desconto até 50% (que já era muito grande), neste momento nem sequer essa limitação dos 50% tem. Isto quer dizer que esta regra, a que eu chamo um resquício da Troika, e é claramente um resquício do pensamento neoliberal europeu, fez com que a aquisição destes serviços – e estou a falar do setor público – funcione, literalmente, como uma simples compra de batatas!..
Como assim?
A crise é de tal maneira grande que há grupos, que muitas vezes até nem são ateliês de arquitetura, são grupos de projetistas que se organizam a partir de um gabinete de mediadores e orçamentistas, contratam um jovem arquiteto, juntam também uns engenheiros amigos e fazem preços de concorrência completamente inviáveis dentro de um patamar mínimo de prestação de qualidade. Dou-lhe um exemplo do que aconteceu há bem pouco tempo: há um gabinete que ganha com um preço, neste caso um preço/hora, anormalmente baixo. E o encomendador, porque a lei assim o permite, pediu justificação porque achava que o preço era anormalmente baixo. E uma das justificações apresentadas foi – ‘porque pagamos mal aos nossos colaboradores’! Isto, aparentemente, até ficou escrito. Ora bem, quando se chega a este estado, percebe-se um pouco o que se passa. É claro que eu não estou com isto a tolher a reivindicação que os jovens arquitetos têm que fazer e devem fazer na minha opinião, e têm todo o direito e a justiça de o fazer, para que, no mínimo, na contratação, se cumpram as legislações existentes e honorários justos.
– E nesse exemplo que acabou de relatar, essa empresa acabou por ganhar o concurso?
Suponho que sim. Mas não importa. Este caso nem é muito significativo, mas revela um estado generalizado de esmagamento e desentendimento sobre o que é a prestação dos serviços de Arquitetura.
Há uma autoridade da concorrência que defende estes princípios da adjudicação aos custos mais baixos e eu não entendo como é que a Concorrência se remete exclusivamente às questões financeiras… A concorrência não pode ser só financeira, não é só uma questão de mercado puro e imediato, do curto prazo; a concorrência tem também de exigir concorrência de qualidade. A encomenda que se desenvolve no nosso país, sofreu uma degradação brutal.
– O arquiteto tem vários projetos adjudicados através de concursos públicos. Assistiu a este tipo de situações?
O meu ateliê cresceu muito, sobretudo nos anos 90, graças aos concursos públicos, de aplicação dos fundos europeus. Na altura obrigavam a fazer concursos e era de facto obrigatório o concurso público, mas nessa altura eram concursos públicos de arquitetura, não eram adjudicações de batatas!… Toda a legislação que se desenvolve a partir dos anos da Troika, para a contratação pública, é uma legislação que regulamenta os vários tipo de concurso – e devo dizer que alguns até estão bem regulamentados – só que são pouquíssimos os que utilizam esse mecanismo. Isto porque quer as autarquias, quer o Estado, quer o Governo, tendencialmente vão pela solução mais óbvia que é a atribuição do trabalho exclusivamente pelo custo mais baixo. Se um quartel tiver de adjudicar o fornecimento de batatas vai decidir pelo preço mais baixo mas sempre pode fiscalizar a qualidade das batatas, apesar de tudo não as compra se elas estão podres. Mas aqui, para a prestação de serviços de arquitetura, não há qualquer controlo de qualidade.
– E como é no setor privado?
O setor privado vai atrás e ainda esmaga mais os preços. Mas quem abre esta porta é o setor público.
– Quais são as consequências dessa falta de controlo na qualidade da obra encomendada seja pelo setor público, seja pelo privado?
Há consequências que podem ser resultantes de soluções construtivas também elas muito pragmáticas e muito primárias do ponto de vista da performance e, depois, da qualidade do edifício. Mas há outras que são mais difíceis de avaliar, que é a qualidade espacial, a qualidade da luz, da térmica, etc… Ou seja, o desempenho destes edifícios. A outra consequência que é muito imediata é a erosão acelerada desse edifício. Porque este se for feito utilizando materiais mais pobres e soluções mais expeditas, obviamente ao fim de quatro, cinco ou seis anos já está a precisar de uma pintura, os isolamentos já não são suficientes…
– Quantos arquitetos estão inscritos na Ordem atualmente?
Cerca de 25 mil. Mas temos a suspeita de que há muitos arquitetos que estão no ativo e que não estão inscritos na Ordem. Fora os da diáspora.
– Na crise anterior, muitos arquitetos emigraram. Que escapatória há com esta nova recessão?
Na outra crise, o impacto económico foi muito forte nos países meridionais, da coroa mediterrânica, mas a economia dos países ricos continuava a funcionar e fortemente. Agora esta crise também está a abalar a economia dos países mais ricos, é transversal. Portanto, se houver uma diáspora, a pergunta é para onde? Porque, como sabe, a diáspora na outra crise foi para o Norte da Europa rica – mas neste momento essa zona também está com problemas, desemprego…
Mas não quero cair no discurso quase monocórdico e quase unânime de que vamos todos sucumbir… Também quero acreditar que, apesar de tudo, as coisas estão a acontecer. Desta vez a Europa vai ser mais Europa do que foi na outra crise. Quero acreditar que a Troika não vai voltar e que a austeridade será gerida de outra maneira, apesar das dissidências dentro da Europa. E o Governo português tem estado empenhadíssimo. Quero ter leituras positivas e acho que os organismos e as instituições e neste caso a Ordem, que nos toca diretamente, não podem baixar os braços.
– Para finalizar, de que forma o confinamento vai levar as pessoas a repensarem sobre o espaço que habitam?
As pessoas ficaram confinadas às suas habitações em situações completamente anómalas e nessa retenção forçada começaram a perceber que a casa tinha outras dimensões que até então não se apercebiam. Algumas passaram a valorizar as janelas viradas a sul, que permitem que o Sol entre dentro de casa. Outras lamentaram ter a casa atulhada de pilhas de muitas coisas que confinaram ainda mais o seu espaço. E depois há ainda os outros, famílias onde se inclui o casal já de certa idade que acolhe o filho, a nora e um neto ou dois e ali têm de viver todos porque o casal mais jovem não consegue encontrar habitação acessível pois o Estado se demitiu olimpicamente de investir neste tipo de construção e delegou na banca. Para estes, o confinamento é ainda mais complicado. E se por acaso acontece uma pessoa adoecer dentro de casa e não vai para hospitalização, será que tem sequer um quarto com wc incorporado para fazer ali uma quarentena como deve ser? A Constituição Portuguesa consagra o direito à habitação a toda a gente, mas quem tem vindo a gerir isso nos últimos 40 anos tem sido a banca, com os resultados que estão à vista.