Em Portugal há uma década, onde se divide entre a denúncia do regime russo e o ativismo pelo ambiente e pela mobilidade em Lisboa, Ksenia Ashrafullina, 37 anos, tornou-se conhecida à beira das eleições autárquicas de 2021 com o caso Russiagate, no qual a Câmara Municipal de Lisboa forneceu a Moscovo os nomes dos cidadãos russos que, como ela, se manifestam contra o poder de Putin. Aquela que o embaixador russo classificou então como “a senhora ativista” faz, em entrevista à VISÃO, um retrato da angústia e da aflição desencadeadas pela mobilização de reservistas, anunciada há dias pelo Kremlin, para estimar que os dias do Presidente Putin podem estar a chegar ao fim e apela à criação de um estatuto de refugiados na União Europeia para os que fogem daquele decreto.
Qual é a dimensão da fuga dos reservistas na Rússia?
Forte, por parte daqueles que, felizmente, a podem levar a cabo. Mas o desespero é total. A minha mãe ligou-me no domingo, logo de manhã, a perguntar-me o que deveria fazer o filho de uma amiga, tendo em conta que corre o risco de ser mobilizado. O rapaz está muito nervoso, ansioso, com tensão alta; os familiares estão desesperados. Enfim, esse é o cenário na minha cidade provincial, de que ninguém sabe pronunciar o nome e que fica ali no meio da Rússia. Como já tinha estado a estudar isso, recomendei-lhe que fosse para o Cazaquistão, pois temos uma fronteira perto – são, mais ou menos, umas nove horas de carro. Mas atenção: isto para quem, como este jovem, conta com um passaporte e que faz parte dos 30% que o têm. Porque 70% não têm passaporte e nunca viajaram. Este rapaz tem cerca de 30 anos e só esteve na Turquia uma vez. Há outras realidades graves, como a do filho de uma outra amiga da minha mãe, com quem brinquei – eu tinha 6 anos quando ele nasceu. É uma mãe solteira, são pobres, nunca saíram da nossa república, o Tartaristão [uma das 21 que constituem a Federação Russa]. Como é que, sem dinheiro, o miúdo sai do país e para onde? Estão completamente perdidos. Essa mãe está em pânico; nem consegue reagir.
A mobilização está a ser feita com maior intensidade no Centro e no Oriente do país?
Está a ser feita em todo o país, mas de forma desproporcional. Pensemos como o Kremlin: se queremos carne para canhão, de que forma a arranjamos? Temos de ir às regiões russas longe do Centro, onde qualquer protesto é parado ou cujas populações não podem viajar 12 dias até Moscovo para se manifestarem. Onde é mais fácil ali mobilizar o reservista, colocá-lo num avião e mandá-lo para a linha da frente. É uma estratégia. Além disso, são pessoas pobres e sem acesso aos média independentes. Alguns desses homens até têm acesso a informação, mas estão formatados, e outros, que não estão, passam por uma enorme apatia. Na Buriácia [república no Sul da Sibéria], cujos habitantes sofrem humilhação quotidiana, porque são asiáticos com influência mongol, a minha melhor amiga tem um filho e ainda não decidiu o que vai fazer, porque ele não sabe falar russo, apesar de ter o passaporte russo.
E tudo isso a acontecer em poucos dias. É angustiante.
A Buriácia é a segunda região com maior mobilização desde o início da guerra. O Daguestão [República no Sudoeste do país] é a número um. Mas, lá está, os mobilizados são, na sua maioria, muçulmanos, pobres e sem qualquer possibilidade social de ter uma vida minimamente cómoda. Também são humilhados por serem pretos.
Aqueles que fazem parte dos 70% da população sem passaporte podem fugir para onde?
Quem tem passaporte, e dadas as sanções aplicadas aos voos devido à guerra, pode sair para a Turquia. Quem não tem um passaporte, que é algo que demora muito tempo a obter, só tem quatro países que aceitam a entrada: a Bielorrússia, que é a pior opção, por ser uma ditadura amiga (se algo correr mal, devolvem a pessoa; mas muitos foram, porque quem mora perto de São Petersburgo, obviamente, não ruma ao Cazaquistão); a Arménia, mas que não tem fronteira comum e aonde se chega só por via aérea (daí que os voos estejam esgotados e caríssimos); o Cazaquistão e o Quirguistão, que fazem parte de um espaço comum sem visto e cujos próprios habitantes eram humilhados por entrarem na Rússia.
Esta mobilização pode ditar o fim de Putin?
Penso que sim, que pode ditar o fim de Putin. Mas, sem querer fazer exercícios de futurologia, quando alguém de quem não se gosta distribui armas às pessoas, o mais provável é vir a desencadear revoluções. Na Primeira Guerra Mundial, isso aconteceu na Rússia, com as pessoas armadas que voltaram e se revoltaram contra o Czar. Na Rússia, pode acontecer como em Portugal com o 25 de Abril, em que, apesar da mitologia de que foi o povo que fez a revolução, os militares puseram fim ao sistema. O regime que Putin criou é um contrato social, em que, apesar de existir uma suposta democracia e uma Constituição, as pessoas são levadas a crer que nem vale a pena tentar mudar e que é preferível dedicarem-se a consumir conforto. As pessoas no Ocidente não sabem, mas na União Soviética não se pensava no conforto. Com esta mobilização, quem não se envolvia na política está a ser arrancado da sua apatia, para defender uma ideia de Putin que não estava nesse contrato social.
Não será imediato esse fim…
É uma agonia. A Rússia vive espasmos de uma agonia da União Soviética, porque voltámos ao padrão de Estaline: o de recriar um campo de concentração no território inteiro, onde impera um caos enorme.
Ao que se deve esta mobilização, ao fim de sete meses de guerra?
Esta guerra não estava nos planos de Putin, que vivia muito bem entre os seus palácios e iates. Quis ser o grande unificador em três dias, porque, ao viver numa bolha, recebeu uma previsão incorreta, que omitiu tudo aquilo que está a acontecer.
Foi enganado pelo sistema?
Foi enganado por si próprio, porque foi ele quem criou o sistema.
Mas também pelo medo, não? Porque vimos imagens em que os consultores, por receio, diziam a Putin o que ele gostaria de ouvir.
Sim. É um sistema em que quem diz a verdade tem de sair. Se diz o que Putin quer, mantém-se, num meio corrupto e enviesado. Vladimir Putin não é um intelectual, nem é uma pessoa de lógica ou ciência. E as pessoas que o acompanham são de uma capacidade medíocre a nível de pensamento, que “compraram” ideias esotéricas, banais e superficiais de alguém que fazia as visitas esperarem 40 minutos e que não pronunciava ou fingia não saber ler os nomes dos líderes dos “ãos” – Uzbequistão, Cazaquistão… Esta mobilização surge já na fase que eu classificaria de beauty pageant [concurso de beleza], em que, passados os tais três dias de que o convenceram que ia durar guerra, aparecem narrativas com soluções cuja eficácia já vimos – um reforço da Chechénia, com militares desmotivados, ou grupos militares privados, como o Wagner, compostos por criminosos legalizados e maníacos.
Os mobilizados são, na sua maioria, muçulmanos, pobres e sem qualquer possibilidade social de ter uma vida minimamente cómoda
Como Charles Michel, presidente do Conselho Europeu, falou, era importante a União Europeia criar um estatuto de refugiado para quem foge da mobilização?
Era uma boa ideia, porque há países que já fecharam a fronteira. A Alemanha não e, espero, que Portugal também não. Estas pessoas não querem ir para a guerra, não querem apoiar Putin e fizeram uma escolha – saírem para não serem assassinos. É melhor receberem-nos agora, do que deixá-los irem para a guerra e transformarem-se em assassinos. A guerra não faz bem e, criando uma classe de assassinos, vão voltar à Rússia com traumas enormes, potenciando casos de violência doméstica e de violações, num país já muito traumatizado por este tipo de vivências.
Sabe-se o que aconteceu com aquelas pessoas dos territórios ucranianos que foram retiradas logo no início do conflito pela Rússia? Onde estão?
Foram distribuídas pela Rússia. Para a minha cidade foram enviadas algumas. Um dos comentários que ouvi foi “têm dentes muito maus”. Ora, são pessoas pobres. Sabe-se que algumas ficaram chocadas com os salários baixos que oferecem nas fábricas. Mas pouco mais, porque são pessoas que não se manifestam.
Sente que aumentou a russofobia?
Em Portugal, não. Mas no mundo sim, principalmente nos países perto da fronteira com a Rússia. Não querem saber quem és e se lutaste contra o regime. Acham que se deve ficar na Rússia e fazer uma revolução. Dá vontade de dizer: não nos lembramos de vocês da Letónia, Lituânia ou Estónia, que também faziam parte da União Soviética, fazerem revoluções! Porque não é assim que funciona. Em Portugal, com o caso Russiagate, houve uma espécie de vacinação contra o Putin e as pessoas ficaram a saber que há uma oposição russa.
Com esse caso, foi avisada para não voltar à Rússia?
As coisas não funcionam assim. Não há uma ameaça direta à pessoa. O que fiz foi: não disse nada à minha mãe e aguardei para perceber a dimensão e a velocidade da difusão da história. Demorou cerca de um mês até ela ler informação que circulava então pelo Dozhd e pelo Meduza [órgãos de informação independentes].
O Partido Comunista (PC) da Federação Russa não pode ser uma alternativa? O próprio Alexei Navalny apelou ao voto nos comunistas, há um ano, nas eleições para a Duma.
É um partido completamente domesticado. O líder do PC russo, Guennadi Ziuganov, faz parte da peça de teatro do Kremlin. Há um ano, a estratégia da equipa de Navalny foi a de tentar entregar uma parte do poder popular, através dos votos, aos comunistas. Eu própria adotei esse voto estratégico. Conseguiram ganhar lugares no parlamento, face a 2016, mas foram domesticados. A estratégia não funcionou.
Como olha para a última ameaça nuclear de Putin?
A ameaça nuclear sempre existiu. Quando acenas que tens de usar a arma nuclear, só demonstra o quão fraco és. Para convencer a Europa, Putin só tem duas táticas: comprar ou intimidar. Os europeus compram-se, mas não são facilmente intimidáveis. A Finlândia deu a cidadania aos Rotenberg, família de oligarcas russos, e só agora, com a pressão por causa da guerra, é que equaciona tirá-la. Como em Portugal, com Abramovich. Como Putin não consegue comprar mais a Europa, que o surpreendeu com uma só voz organizada, partiu para a intimidação.
Já não se fala das sanções à Rússia. As que foram aplicadas estão a ter o efeito pretendido pelo Ocidente?
Os russos não sabem o que é conforto e o pouco que têm acomoda sempre mais um corte. Estão habituados a que tudo esteja sempre mal. É difícil explicar o que se vive nas províncias russas. É um cenário de pobreza, onde se vive com pouco, de refeições frugais. Mas, sim, as sanções vieram produzir efeito, com perda de empregos e pessoas desesperadas. Mas, de todas as coisas que poderiam desestabilizar, sem dúvida que foi esta mobilização que veio provocar um abanão. Ou seja, a morte iminente de um familiar é muito mais forte do que não ter o que comer.
Então, quanto tempo pode demorar esta guerra?
A História da Rússia é imprevisível. Pode acontecer o que sucedeu com o último imperador, o czar Nicolau II, uma crueldade total. A única certeza que tenho é que se aproxima o fim. Alguém que pensava ser, em três dias, o grande unificador da Grande Rússia já não tem nenhuma saída positiva para ele. Está num beco sem saída. Todas as guerras acabam. E esta, provavelmente, acabará mais cedo do que se espera.