Fernando Teixeira dos Santos é um recordista. Foi quem exerceu por mais tempo as funções de ministro das Finanças em democracia, durante exatamente cinco anos e 11 meses. Antes, tinha sido secretário de Estado do Tesouro e Finanças de Sousa Franco, com quem preparou a adesão de Portugal à moeda única. Poucos saberão que o primeiro convite que recebeu, para fazer parte desse governo de António Guterres, foi para o cargo de secretário de Estado do Comércio de Daniel Bessa, então ministro da Economia e seu amigo desde os tempos em que davam aulas na Faculdade de Economia do Porto (FEP). Na altura, o próprio Guterres dissuadiu-o de aceitar, com o argumento de que o titular dessa pasta era alguém que se ocupava a “mandar uns polícias atrás de umas camionetas”. E assim foi parar ao Terreiro do Paço, aonde regressaria em 2005, já como ministro das Finanças de José Sócrates.
O episódio é contado por Daniel Bessa no prefácio de Mudam-se os tempos, mantêm-se os desafios (ed. Bertrand), o livro em que Teixeira dos Santos, conhecedor profundo das debilidades do País, reflete sobre a falta de produtividade, a subida do salário mínimo e o nível da carga fiscal que recai sobre os portugueses. Num dos capítulos, conta, na primeira pessoa, como em 2011 “encostou às cordas” o ex-primeiro-ministro, José Sócrates, e o forçou a pedir ajuda externa para Portugal, naquele que foi “o pior momento” da sua carreira política.
Portugal vai ter eleições, a inflação e os juros ameaçam subir e a retoma pode abrandar com a quinta vaga da pandemia. Como vê o País a médio prazo?
Preocupa-me o ambiente de incerteza. Não sabemos se a inflação é transitória ou se veio para ficar, não sabemos se estamos de facto a ultrapassar o pior momento da pandemia e não sabemos se vamos ter um quadro de estabilidade política e de governação. Espero que essas questões sejam clarificadas e que o País possa enfrentar com confiança os grandes desafios.
Com ou sem pandemia, mantêm-se os desafios que já vêm de trás, como afirma o título do seu livro?
Sim, o livro é um alerta. O País sofreu várias crises, enfrentou problemas, progrediu, mas não tanto quanto seria necessário. A posição relativa de Portugal continua a ser na cauda da Europa. Mas temos de ter uma ambição maior. Somos um país fundador da moeda única.
Até à pandemia, tínhamos os défices equilibrados. Agora, temos a “bazuca” dos fundos europeus a chegar. Será suficiente para resolver os problemas económicos?
A produtividade é o principal desafio. O facto de o País ter atingido o equilíbrio externo e, em 2019, o equilíbrio orçamental, cria condições muito positivas. A “bazuca” vem num momento oportuno. Espero que as empresas estejam à altura do desafio e que avancem com projetos, para que o País dê o salto. Nos últimos 20 anos, a produtividade cresceu, em média, abaixo de 1% ao ano. Mas o problema não é só nosso. A União Europeia (UE) e a zona euro também tiveram um progresso muito medíocre. Não é possível melhorar as condições de vida dos portugueses sem um aumento significativo da produtividade. É a única via, não há outra.
A maior digitalização trazida pela pandemia não está já a fazer crescer a produtividade?
Ainda não temos muita informação. Sem dúvida que o progresso tecnológico e a digitalização são muito importantes. Portugal tem apostado muito nesta área, mas ainda temos um fraco grau de adoção das soluções digitais.
O problema está diagnosticado desde há décadas, mas nunca se resolveu. De que precisamos para melhorar a produtividade? De mais investimento, mais qualificações ou melhores salários?
Temos tido um baixo nível de investimento. O stock de capital – os instrumentos, as ferramentas, os equipamentos, as instalações, as infraestruturas – está a diminuir. A quantidade de bens de capital disponível por trabalhador é de pouco mais de metade da zona euro. Os trabalhadores não podem ser muito produtivos se não têm essas ferramentas. Quando estão em empresas com estruturas de organizações e sistemas de gestão que incentivam e premeiam o esforço, eles são produtivos. Há três frentes em que temos de apostar: mais qualificações e competências, que ainda são inferiores à média europeia, mais investimento e melhor organização e gestão do trabalho.
Os salários baixos são uma causa ou uma consequência da baixa produtividade?
São um reflexo da situação. Mas não podemos aumentar os salários de forma desligada da melhoria da produtividade, senão voltamos a cair na situação do passado.
O Salário Mínimo Nacional (SMN) tem evoluído desligado da produtividade. É um erro?
Em minha opinião, sim. Reconheço que há uma componente de política social no SMN, mas não podemos ignorar os aspetos económicos.
No programa eleitoral, o PS propõe aumentar o SMN para €900 até 2026. Isto é insistir no erro?
As contas são fáceis de fazer. A inflação mensal anda perto dos 3%, a produtividade tem aumentado, em média, pouco mais de 0,5% ao ano – mas vamos supor que vai crescer 1% ao ano. O alinhamento dos salários com a inflação e com a produtividade aponta para um crescimento médio de 4%. Esta é a referência salarial que não podemos ignorar.
Mas o SMN tem crescido acima de 4% ao ano. Que efeito vai ter?
Está a aproximar-se do salário médio, mas não devia progredir a esse ritmo. Uma aproximação do salário mínimo ao salário médio pode ter um efeito de desincentivo ao trabalho para aqueles que legitimamente esperam ter salários diferenciados.
Os impostos têm sido um dos temas da campanha eleitoral. Há ou não espaço para diminuir a tributação, tendo em conta o nível da despesa pública?
Uma redução de impostos tem de ser para manter. Ninguém quer reduzir impostos para daqui a uns anos ter de tirar aos portugueses o que se lhes quer dar agora. Mas sem dúvida que é importante. Não haverá governo ou ministro das Finanças que não o queira fazer. Uma medida deste tipo tem de assentar numa avaliação muito realista. Temos de estar seguros da estabilidade das políticas monetárias e da evolução dos juros, e temos de ter previsões realistas quanto ao crescimento económico. Também não podemos ignorar que a pandemia teve impactos orçamentais e que nos fez perder o equilíbrio atingido em 2019. Eu aconselho prudência. Estamos num ambiente de algumas incertezas.
Concorda que as metas europeias sejam flexibilizadas? O limite de 60% do PIB para a dívida pública ainda é razoável? Há economistas convencidos de que a dívida pública elevada não afeta assim tanto o crescimento.
Mais do que com as regras europeias, temos de estar preocupados com a leitura que os mercados fazem da situação orçamental. O juízo último não é feito em Bruxelas, mas sim nos mercados onde temos de ir buscar financiamento. Nesse sentido, concordo que o nível da dívida não é necessariamente um problema. Se o País crescer e melhorar a produtividade, gerará confiança nos mercados mesmo com uma dívida elevada. Se os mercados não tiverem essa perceção, o risco aumenta, as taxas de juro sobem e os investidores têm relutância em financiar-nos. Foi o que sucedeu nas crises financeira e da dívida soberana.
Se viesse a ser ministro das Finanças do governo que sairá destas eleições, qual a primeira medida que tomaria?
A minha primeira medida seria pedir que me dessem um beliscão para acordar [risos]. Não me queria meter por aí. É um cenário hipotético, irrealista e muito académico. Sou muito claro em relação às prioridades. Temos de fomentar a produtividade e o crescimento, equilibrar as finanças públicas e dar sustentabilidade à saúde, à educação e à segurança social. Precisamos de estabilizar o peso da despesa na economia e, se tivermos crescimento, podemos aliviar a carga fiscal.
Dedica o livro aos netos, mas o livro reflete mais os problemas do presente do que os desafios do futuro, como o clima, a digitalização, o envelhecimento…
As tendências demográficas são um grande desafio para a economia e para as finanças. Identifico os desafios, aponto as prioridades para os ultrapassar, mas sem cair na tentação de ser prescritivo. Seria arrogância da minha parte achar que tenho soluções para tudo. Acredito muito na capacidade das famílias, das empresas, das instituições, e até da classe política, de encontrar as soluções certas no momento certo. Não tenho um receituário infalível. Tenho ideias sobre os assuntos, algumas delas estão no livro, mas não quis fazer um programa de ação. É apenas um contributo modesto, um alerta sobre o que não podemos continuar a adiar.
O capítulo do livro que todos vão ler em primeiro lugar é o do resgate de Portugal…
Era inevitável voltar lá. É um passado que me persegue [risos].
Porque é que decidiu agora, antes de umas eleições legislativas, revelar o que se passou nos dias que precederam o resgate?
Escrevi o livro antes de as eleições serem marcadas. Mandei o manuscrito para a editora no dia 30 de setembro, antes da dissolução do Parlamento. Foi uma coincidência.
Passaram mais de dez anos sobre os acontecimentos. Porquê agora?
Fui muitas vezes desafiado a escrever sobre a minha experiência no governo, mas os últimos anos não foram fáceis. Houve muitas tensões. Quando saí do governo, estava longe de querer reviver o que se tinha passado. Mas o facto de terem passado dez anos permitiu que o professor de Economia, que há em mim, pegasse no volante, levando consigo o ex-governante, e vendo as coisas pelo retrovisor com maior distanciamento, sem ignorar que fui parte ativa nos acontecimentos. Acho que houve vantagem em escrever o livro passado todo este tempo.
Foi o pior momento do seu mandato? De toda a sua carreira?
Sem dúvida que foi.
Hesitou em fazer a declaração que tornou inevitável o pedido de ajuda externa? Teve dúvidas?
Nunca se pode prever o futuro. Hesitei porque não sabia se era o momento oportuno, mas não tive dúvidas em relação ao que era preciso fazer. Houve um período anterior, em que se esperava melhorar a situação e aliviar a pressão dos mercados com o PEC 4. A partir do momento em que o PEC 4 não passou, e em que os mercados puseram ainda mais pressão sobre o País, tornou-se inevitável pedir ajuda externa.
Podia ter sido diferente? Não havia mesmo alternativa à vinda da Troika?
Não. Quando chegámos ao ponto a que chegámos…
Justificou a resistência de José Sócrates com “razões políticas”. Tinha medo de perder eleições ou de assumir a derrota da sua governação?
Houve claramente relutância em avançar com um programa de medidas mais ousado, mas faltava enquadramento europeu que pudesse alavancar o esforço nacional. Não havia uma câmara de eco. A UE demitiu-se de enfrentar a crise financeira e empurrou para os países, contrariamente ao que fez agora na pandemia. Por causa disso, entrámos num vórtice de austeridade e de sacrifícios, sem um fim à vista. As condições políticas internas também não eram favoráveis porque os partidos da oposição não estavam alinhados. O governo estava isolado, sem apoio político e social para avançar com medidas impopulares – e nenhum partido político é insensível a isso. Também pesou o historial do País. O FMI já tinha vindo para Portugal duas vezes. O seu regresso tinha um peso e um ónus político se calhar exagerado, mas a perceção era essa. O primeiro-ministro era muito sensível ao facto de ter de ser ele a chamar o FMI pela terceira vez.