“A corrupção é um crime de oportunidade. E o cenário perfeito para a oportunidade surge quando existe muita proximidade entre quem é nomeado e quem nomeia”

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“A corrupção é um crime de oportunidade. E o cenário perfeito para a oportunidade surge quando existe muita proximidade entre quem é nomeado e quem nomeia”

Patrícia Silva, 39 anos, investigadora da Universidade de Aveiro, abre a caixa de Pandora da relação entre os partidos e a Administração Pública. Na linguagem do universo Star Wars, olha para a Força e para o lado da Sombra. No ensaio Jobs for The Boys, que a Fundação Francisco Manuel dos Santos acaba de lançar, a cientista política traça linhas vermelhas e avança com propostas para alterar uma das questões mais responsáveis pelo afastamento dos cidadãos em relação às elites políticas e pelo aparecimento dos populismos.

Os jobs for the boys são, em parte, responsáveis pela desconfiança que os cidadãos têm revelado pelas elites políticas nas sociedades ocidentais?
É uma ideia que tem vindo a ser muito explorada, sobretudo pelos novos partidos populistas que tendem a utilizar esse discurso da separação entre uma elite corrupta, que utiliza os recursos do Estado, e o povo virtuoso. Aquilo que se sabe é que, de facto, a politização é um dos aspetos que fazem com as pessoas desconfiem da elite política: as nomeações são vistas como mecanismos que permitem aos partidos se alimentarem com a estrutura do Estado. No entanto, gostaria de deixar claro que, pela Europa fora e não só, temos muitos casos de pessoas que tinham este discurso e que, mais tarde, foram acusadas de oferecer contratos públicos, de corrupção… Olhemos para Steve Bannon.

Mas, apesar de ter contradições, trata-se de um discurso muito difícil de desmascarar.
E é um discurso que convence facilmente. Em matéria de corrupção, não temos mecanismos de prevenção. Só depois de as pessoas serem eleitas é que se descobrem os casos de corrupção. E mesmo os mecanismos de punição nem sempre estão a funcionar. Isto para dizer que há realmente um discurso contra os partidos políticos e contra as elites que nos governam, e que esse discurso se alimenta da desconfiança e do afastamento que as pessoas sentem em relação às elites e aos partidos políticos. Também é necessário termos sentido crítico para compreendermos o alcance dessas críticas.

Apesar desse discurso, os partidos continuam a desempenhar um papel fundamental?
Sim, continuam a ser a base do funcionamento democrático. Precisamos dos partidos na medida em que são eles que agregam as preferências dos cidadãos e que, depois, se candidatam a eleições. De outra forma, não teríamos um sistema representativo a funcionar bem. E é aqui que entra o mecanismo das nomeações: precisamos de assegurar que as medidas não só são implementadas como o são de acordo com aquilo que foi apresentado ao cidadão. As nomeações servem para assegurar essa continuidade. O problema é que se trata de um mecanismo tão flexível que permite controlar a Administração Pública e os processos de políticas públicas, mas também recompensar lealdades e esforços daqueles que, digamos, deram o corpo às balas.

No seu livro diz que as nomeações para a Administração Central são como o colesterol – há o bom e o mau. Quer explicar?
Devo confessar que não percebo muito de medicina [risos], mas sei que existem dois tipos de colesterol: um é negativo e entope as artérias; o outro é positivo, e até convém ter índices elevados. Qual é a relação disto com as nomeações? De facto, estas permitem controlar a Administração Pública, e isso é um exercício muito difícil de se fazer, sobretudo quando olhamos para toda a estrutura: temos a Administração Pública Direta, a das direções-gerais, temos mais de 500 institutos públicos, temos empresas públicas, temos entidades reguladoras, temos milhares de funcionários a operar, temos os ministros e os secretários de Estado, que têm a função de implementar os programas de Governo e as políticas públicas… Trata-se de uma máquina complexa que, muitas vezes, não colabora entre si; há feudos, há campos rivais.

Não se está a esquecer do “lado mau da Força”, como também diz no livro?
Sim, existe também o “lado mau da Força”. Quando ocorrem de forma menos clara e transparente, as nomeações permitem colocar na Administração Pública indivíduos que não gostaríamos de que lá estivessem. Esta é a primeira associação que fazemos: a de que temos boys e girls nos partidos, e que estes boys e estas girls estão a ocupar a estrutura do Estado, assumindo-se que não são competentes. Contudo, há ainda um lado mais perverso: quando existe uma ligação personalizada entre quem nomeia e quem é nomeado, cria-se um conjunto de relações que impede, muitas vezes, que se identifiquem incompatibilidades. Gera-se um círculo vicioso de uma elite que está fechada sobre si mesma e fecha-se os olhos a situações que não estão a correr bem.

Abre-se espaço para uma certa tolerância, para uma cultura política?
Exato. As práticas de corrupção, sejam elas de grande ou de pequena escala, são crimes de oportunidade. A corrupção é um crime de oportunidade. E o cenário perfeito para a oportunidade surge quando existe muita proximidade, pessoal e por vezes também partidária, entre quem é nomeado e quem nomeia. Cria-se um circuito de relações pessoais sem freios nem contrapesos…

Um crivo maior como o que existe no sistema norte-americano?
Quando falamos no caso norte-americano, falamos de facto num crivo maior. Mas esse sistema nunca poderia funcionar no contexto português, porque aquilo que os norte-americanos têm é uma rotação automática no topo assim que muda o executivo. Trata-se de um sistema que funciona muito bem, mas que é suportado por outras instituições que asseguram alguma continuidade dentro da máquina administrativa. Também está relacionado com a estabilidade permitida pelo sistema eleitoral maioritário. Nos sistemas representativos proporcionais, os parlamentos são muito mais fragmentados e, muitas vezes, os governos sobrevivem com representações minoritárias. Basta olhar para o contexto português desde 1999.

Quando comparamos a máquina da Administração Pública portuguesa com outras, tendemos a achar que se trata de uma máquina muito grande. Defende o contrário…
Se observarmos os dados da OCDE, podemos facilmente concluir que a Administração Pública portuguesa não é das mais pesadas. Nem em termos absolutos nem em termos da proporção dos funcionários públicos face ao total da população ativa. Se olharmos para os outros países europeus, o que verificamos é que Portugal, tal como a Grécia e a Espanha, tem uma máquina administrativa mais burocrática. Ou seja: ela não é pesada do ponto de vista do número de pessoas, mas do ponto de vista administrativo, da forma como as coisas funcionam. Temos também uma máquina mais politizada, em que existe maior abertura da Administração Pública para que ocorra “o lado negro da Força”. E isto em níveis hierárquicos mais baixos, que consideramos pouco relevantes mas que o são igualmente para os partidos políticos.

Existe uma correlação entre o peso do Estado na economia e o tamanho das administrações centrais?
Não fiz essa correlação e, portanto, não tenho valores exatos, até porque teríamos de ver o que queremos dizer quando falamos do peso do Estado na economia… Agora, há uma questão que me parece relevante e que também tem que ver com isso: a da dependência do setor empresarial em relação ao Estado e ao financiamento do Estado. O setor empresarial português não só está dependente do Estado como o próprio mecanismo das nomeações também existe em relação às empresas: o Estado vai buscar pessoas a esse mercado e a essas empresas e, depois, nós não temos forma de garantir que essas empresas e esses setores não serão beneficiados. No fim, temos o sistema judicial que não funciona de forma a prevenir incompatibilidades e casos de crimes de corrupção.

A tempestade perfeita.
Se não incluirmos fortes mecanismos de controlo, se não tivermos também uma comunicação social ativa, corremos o risco de uma tempestade perfeita.

Há um dilema entre o tempo da política, que implica alternância e uma certa rotatividade nos cargos, e o tempo das políticas públicas. A Comissão de Recrutamento e Seleção para a Administração Pública (CReSAP) também tinha esse objetivo?
Sim, mais até do que o objetivo de despartidarizar, que a CReSAP nunca quis assumir. E bem, eu diria, porque nunca teria poderes para despartidarizar as nomeações, já que a partidarização ocorre de uma forma mais sub-reptícia. Despartidarizar implicava obrigar as pessoas que assumem determinadas funções a declararem a sua filiação partidária e a impedi-las de exercerem funções enquanto mantêm essa filiação partidária. Também existem defensores desta lógica. A CReSAP, que teve um ímpeto inicial no tempo da Troika, tinha, de facto, como objetivo garantir uma certa continuidade das políticas e um desfasamento em relação aos ciclos políticos.

Na certeza de que não existem sistemas perfeitos, o que sugere que se faça?
A CReSAP foi perdendo a sua relevância, e não sei se não foi para sempre… Terão sempre de existir entidades que fiscalizem, que controlem a atividade, que garantam a proteção dos direitos dos cidadãos, que evitem que as estruturas políticas ocupem um espaço que pertence a todos e que não é limitado a uma elite exclusiva. É importante, por exemplo, estender o perímetro de atuação da CReSAP a um conjunto de arenas em que a comissão não tem mão, como é o caso dos institutos. Também é relevante evitar que existam outras regras, áreas cinzentas, como a do regime de substituição ou a do mecanismo que permite aos governos substituir a estrutura dirigente por necessidade de reorganização do serviço. Ora, a primeira coisa que qualquer executivo faz é reorganizar o serviço!

No ensaio, muito bem-intencionada, também sugere que os cidadãos exijam aquilo a que têm direito.
Admito que possa ser um pouco wishful thinking… O cidadão olha para os políticos e para a governação como algo que está reservado a uma elite da qual ele não faz parte. E o efeito disto é ele pensar: a minha voz não conta. Há um afastamento, de facto, muito notório nas taxas de participação: no início da década, em 2000, PS e PSD, juntos, conseguiam agregar quase 78 por cento. Neste momento, agregam 64%, ao mesmo tempo que a abstenção sobe. As pessoas não se mobilizam porque acham que a sua voz não conta: a sua voz conta!

O combate à pandemia, com a intervenção dos sistemas nacionais de saúde, pode vir a alterar o entendimento que os cidadãos têm do Estado?
É uma boa pergunta, mas ainda estamos a falar de um fenómeno muito recente. Só daqui a uns tempos, quando tivermos resultados dos estudos em campo, conseguiremos estimar as reais consequências da pandemia no sistema político. O que sabemos, desde já, é que a pandemia tem permitido limitar algumas liberdades individuais e que tem havido algum retrocesso em modelos democráticos consolidados e já estabelecidos. Nesta pandemia, as democracias ocidentais enfrentam um problema acrescido que tem que ver com o poder atribuído aos governos para que estes possam impor algumas limitações e com o modo como alguns governos se têm apropriado desse poder acrescido.

E os cidadãos sairão desta pandemia a confiar mais na máquina?
Do ponto de vista da relação dos cidadãos com a política, este cenário tem, pelo menos, conferido uma maior visibilidade da estrutura administrativa. Nunca tivemos um diretor-geral todos os dias na comunicação social [risos]! E é importante as pessoas perceberam que nem todos são boys e girls de partidos políticos, que há pessoas que também exercem funções difíceis na Administração Pública. Em suma: espero que esta pandemia também traga uma maior sensibilidade no que diz respeito ao peso da Administração Pública e à importância dos freios e dos contrapesos relativamente ao poder exercido pelos governos.

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