Leonor Saúde, 51 anos, começou por estudar o princípio de tudo, o momento em que óvulo e espermatozoide se juntam, formando uma única célula que depois dá um indivíduo completo e complexo. Com olhos, pele, coração. Um processo “fascinante” que a levou a querer responder à pergunta “Como é que cada célula se diferencia?”. Quer dizer, como é que ocorre esta especialização no sítio certo: hepatócitos no fígado, neurónios no cérebro… A dada altura, a investigadora do Instituto de Medicina Molecular (IMM) deparou com o peixe-zebra, um animal que tem sido muito útil à investigação, sobretudo pelo facto de ser transparente. Além desta característica, o pequeno peixe tem a extraordinária capacidade de se regenerar. Uma porta aberta para o estudo de lesões da medula, uma área tida como uma das mais desafiantes da medicina. Recentemente, o seu trabalho foi distinguido pela Fundação la Caixa, que lhe atribuiu um financiamento de 450 mil euros para apoiar a investigação nesta área.
Tem sido muito difícil encontrar soluções para uma lesão medular. Porquê?
Normalmente, uma lesão na medula espinal implica um esmagamento e a maior parte dos casos acontece na sequência de acidentes de moto ou de carro e de quedas em piscinas. As vértebras quebram-se e esmagam a medula. A lesão pode ser muito grande ou muito pequena, mas há sempre um esmagamento que impede a comunicação entre o cérebro e o corpo. Aqui não há wireless. Usam-se cabos, à moda antiga. Se estes cabos forem cortados, se for interrompida a comunicação, a informação não vai do cérebro para os membros, nem dos membros para o cérebro e, por isso, as pessoas deixam de sentir frio ou calor e de ter a sensação do tato.
De onde se espera que apareça a solução para este problema tão grave?
A solução passará, obrigatoriamente, por diferentes linhas de investigação. Há toda a parte da engenharia, como os exoesqueletos e a interface cérebro-máquina. Células estaminais, terapias celulares, biomateriais – nós sabemos que as células não gostam de estar em espaços vazios e, portanto, se há uma lesão e fica um espaço por preencher, temos de o ocupar com biomateriais para formaruma matriz para o crescimento de novas células. Portanto, será uma combinação de todas estas soluções.
Qual está a ser o contributo do seu grupo de investigação?
Estamos a estudar qual o papel que um tipo de células, ditas senescentes, tem no mecanismo de regeneração da medula espinhal. Quando há lesão da medula, em qualquer organismo, quer seja um peixe-zebra quer seja um mamífero, um ratinho ou um ser humano, há muita morte celular. À medida que envelhecemos, vamos perdendo funções e vamos tendo cada vez mais células senescentes. São uma espécie de zombies. Isto por um lado é bom, é um mecanismo de defesa antitumoral, porque evita que células velhas, deficientes, degenerem em cancro. As células também mudam de estado, tornando-se senescentes, quando ocorre uma lesão, seja no fígado, seja no coração. Numa pessoa velha, estas células existem em muito mais quantidade do que numa nova. Isto já se sabia há algum tempo. A surpresa foi descobrir-se que estas células surgem, por exemplo, em situações de stresse. O corpo reage e torna algumas células senescentes. E nós descobrimos que estas células estão presentes na medula espinal quando há uma lesão.
Que células se tornam senescentes?
Qualquer célula pode tornar-se senescente e, neste estado, deixa de cumprir as suas funções. Por exemplo, um fígado velho continua a ter hepatócitos, só que não estão funcionais. O que descobrimos foi que quando há uma lesão na medula, estas células aparecem e permanecem. E que no peixe-zebra, que é um animal que regenera a medula…
Como assim?
Assim mesmo. Ao fim de um mês de uma lesão medular, o peixe-zebra volta a conseguir nadar, sem que tenha havido qualquer intervenção, continuando a recuperar, pelo menos, até 60 dias depois.
Impressionante! Mas voltando então às células senescentes…
No peixe-zebra estas células também aparecem, como acontece no ratinho, ou nas pessoas, só que 15 dias após a lesão as células senescentes começam a desaparecer, enquanto no ratinho a sua presença continua a aumentar.
Então, isto quer dizer que o peixe-zebra elimina estas células?
Sim. O peixe-zebra elimina-as. Portanto, o que nós pensámos foi: será que uma das razões por que o peixe-zebra consegue regenerar a medula é por conseguir eliminar estas células?
E o que fizeram?
Bem, o que fizemos, para tentar avaliar isso foi dar uma droga, que é capazde eliminar estas células, a ratinhos com lesões na medula. E os ratinhos recuperaram algum movimento, sensibilidade e controlo da bexiga. Mesmo assim, para estamos ainda mais certos relativamente a isto, queremos tentar a abordagem genética. Ou seja, vamos manipular os genes de forma a controlar a formação de células senescentes para ver o que acontece. Também é muito importante estudar os fatores, as moléculas, que são produzidos e libertados por estas células, o chamado microambiente celular. Estamos convencidos de que este é essencial para a regeneração. Não adianta pôr células estaminais na zona da lesão se as condições à volta da parte lesionada não forem favoráveis – foi com este projeto que concorremos ao la Caixa.
Os humanos também têm células destas?
Nos humanos, sabemos que estas células existem e aparecem como resposta a lesões. No entanto, ainda não conseguimos confirmar que aparecem na sequência de uma lesão na medula. É algo que estamos a tentar fazer, mas, como se compreende, não é fácil ter amostras de medula de pessoas para estudar.
Como é que uma bióloga do desenvolvimento, que estuda a fase embrionária, se interessa pela área da regeneração?
Comecei a interessar-me por regeneração porque trabalhei em peixes-zebra e apercebi-me de que eram um organismo extraordinário, que regenera tudo, coração, pâncreas, retina.
E não morrem?
[Risos.] Essa é a pergunta que todos os meus alunos me fazem. Se retirarmos o coração todo, ele não é capaz
de regenerar, não forma um coração novo. Só até à remoção de um terço do ventrículo é que acontece regeneração. Se for a aurícula, já não ocorre regeneração.
Esta regeneração só acontece após uma lesão?
Exato. E há um limite para a capacidade de regeneração. Regeneram-se praticamente todos os órgãos, mas dentro de certos limites. Algo que seria interessante perceber é qual o sinal que uma lesão gera ao ponto de ativar os mecanismos de regeneração.
São conhecidos os genes envolvidos neste processo de regeneração?
Sim, conhecemos boa parte deles, no caso do peixe-zebra.
Os humanos não têm esses genes?
Não têm todos, mas têm alguns. Só que não estão ativos. No meu laboratório usamos dois modelos animais. Um que regenera, que é o peixe-zebra, e um que não regenera, o ratinho. E queremos perceber por que razão o peixe-zebra regenera a medula espinal, com o objetivo de ativar este mecanismo no ratinho. Ambos têm células senescentes, mas a dinâmica é diferente em cada um dos animais. Então, o que fizemosfoi tornar o ratinho o mais parecido possível com o peixe-zebra, eliminando as células senescentes.
Por que razão o peixe-zebra manteve ou adquiriu esta capacidade e os humanos nunca tiveram ou perderam a capacidade de regeneração?
É outra pergunta que também me fazem muitas vezes e que é muito interessante, mas para a qual não tenho resposta. Há outros animais com capacidade de regeneração. Temos o exemplo clássico da salamandra, que perde uma perna e esta volta a crescer. O que acho interessante é que os mecanismos de regeneração e de formação de tumores estão muito relacionados e podemos pensar que o facto de termos perdido esta capacidade tão incrível de regenerar pode ter que ver com o facto de termos adquirido mecanismos antiformação de tumores. Porque a regeneração é o quê? São células que proliferam, desdiferenciam-se [deixam de ter características específicas] e voltam a formar novas. Isto tem muitos paralelos com o mecanismo tumoral, em que as células deixam de saber quem são.
E será que eliminar as células senescentes não dará origem a mais tumores?
Sim. É uma boa questão. Não sabemos. Há aqui uma dualidade interessante.
Os organismos que se regeneram têm muitos tumores?
Não. Aliás, o peixe-zebra não tem tumores.
Então conseguiram ter o melhor de dois mundos.
Sim, é verdade. Os peixes-zebra só têm tumores quando estão muito velhos.
Há algum mamífero em que isso aconteça?
Há. É uma descoberta da investigadora Mónica Sousa [do i3s]. Trata-se de uma espécie de rato, muito parecido com o ratinho que usamos em laboratório [o rato africano Acomys cahirinus], que é capaz de regenerar.
O facto de haver um mamífero com estas características é muito bom.
Sim, é espetacular! É possível que ainda venhamos a ter muitas surpresas. Mas este animal é mais difícil de estudar, não tem ainda o genoma descodificado, é complicado mantê-lo em laboratório.
E, mesmo assim, ainda está muito longe de um humano.
Pois. Não podemos nunca esquecer–nos de que um peixe-zebra é uma coisinha pequenina, com alguns centímetros apenas. E o ratinho também será muito menos complexo do que o ser humano. O que acho é que temos de perceber a biologia da coisa e ver se o processo é semelhante nos humanos. Para mim foi muito importante ter ido a Alcoitão [unidade de recuperação para doentes com lesões da medula] falar com os pacientes (normalmente são rapazes, jovens) e com os seus terapeutas e perceber que, para estas pessoas, uma pequena melhoria representa um grande avanço. Também pude verificar que, para as pessoas com lesões na medula, é muito importante perceber que há quem esteja preocupado com elas. Provavelmente, não vou chegar a descobrir forma de lhes devolver a marcha. Mas qualquer contributo, por mais pequeno que seja, qualquer pequena melhoria, pode ter um enorme impacto. E isto acaba por ser muito gratificante.
O que os doentes querem saber?
Será que alguma vez haverá um avanço significativo? Porque não se trabalha mais em controlo do esfíncter, em dor neuropática? No fundo, se algum dia será possível melhorar a sua condição. Também me perguntam muito porque é que as coisas demoram tanto tempo.
Há 20 anos, a ideia de regenerar a medula era ficção científica. Hoje já não se pensa tanto assim, já se admite a possibilidade de recuperação…
Eu acho que se poderá recuperar. Aliás, já se percebeu que é possível, pelo menos, estimular a plasticidade neuronal. Agora, se vamos conseguir recuperar ao ponto de uma pessoa que teve uma lesão poder voltar a correr, saltar, isso não sei.