Rui Patrício prefere receber-nos no seu gabinete, decorado com fotografias e obras de arte e dezenas de dossiês de clientes com nomes sonantes, de José Manuel Espírito Santo Silva ao ex-vice-presidente de Angola, Manuel Vicente. Mesmo que continue a recusar o rótulo de “advogado dos poderosos”. Pelo meio falaremos sobre os presos que lhe mandam cartas, sobre o ter usado uma peça de Shakespeare nas alegações do E-Toupeira ou sobre ser pouco dado a festas e a conversas de circunstância. “Até tremo quando recebo mais um envelope. Desta vez é um convite para quê?” É candidato a vice-presidente da Ordem dos Advogados e chegou à administração da Fundação de Arte Moderna e Contemporânea – Coleção Berardo pela mão do Estado.
Defenderia Joe Berardo?
Não tenho um catálogo de pessoas que excluiria. Depende do caso, do contexto, das circunstâncias, da minha agenda. Digo que não muitas vezes, mas não digo não à partida.
Na Fundação Berardo está a defender os interesses de quem?
Fui nomeado pelo Estado. Estou a defender os interesses da fundação, uma entidade criada por lei, que tem determinados objetivos, como a gestão do museu e da coleção de arte. São esses os interesses que eu defendo, independentemente do acionista que me nomeou.
O seu antecessor terá saído por discordar de uma posição do Ministério da Cultura, que não respeitava uma decisão do tribunal sobre o arresto das obras de arte. Sendo conhecido por respeitar as decisões dos tribunais, o que acha disto?
Não vou comentar nem as razões que levaram o dr. Azeredo Neves a renunciar nem as questões internas da fundação. Já tomei posse, já participei em reuniões do conselho de administração e já exprimi a minha posição. Se entenderem ter acesso às atas, saberão qual é.
Se me tornasse sua cliente, como iríamos comunicar?
Para começar, pessoalmente. É um ponto de honra para mim.
Comunica por email?
Comunico, e por telefone. O que não significa que use sempre os mesmos meios para todos os casos e todos os clientes.
Tem questões sensíveis no seu computador? Se um hacker lá entrasse…
É óbvio que tenho coisas comigo, em suporte digital ou em formato papel, que com um certo contexto e uso podem ser sensíveis.
Disse-me há pouco que, à partida, não veta clientes. Sobre o caso de Rui Pinto, escreveu: “É estúpido e perigoso ver bondade em atos criminosos de pirataria informática.” E se o potencial cliente fosse um hacker com estes argumentos, defendê-lo-ia?
Teria de me explicar bem os pormenores e esses fins.
Imaginemos que tinha feito ataques para denunciar atos de corrupção.
Eu não tenho tabelas, nem de pessoas nem de casos. Teria de olhar para esse cliente, para a sua história, para o contexto, para os detalhes.
Escreveu isto porque é advogado da SAD do Benfica?
Os meus artigos são escritos enquanto cidadão; não são para servir o meu trabalho. Escrevi-o convictamente e continuo a achar muito perigoso entrar em análises superficiais em que os fins justificam os meios. Esse axioma costuma derrubar civilizações.
Costuma pedir convites para a bola?
Para futebol não, porque não é das coisas que eu mais goste; para outras coisas, sim, já pedi, e também já me aconteceu serem-me oferecidos. E aceitei-os sem problema nenhum.
E se fosse governante?
Por cautela, talvez não pedisse. Não por fazer sobre isso um juízo crítico, mas por precaução, para os outros não fazerem esse juízo.
Ser advogado dos poderosos implica estar sempre a inventar mentiras para os salvar?
Há várias coisas que repudio nessa pergunta. Não sou advogado dos poderosos. Sou-o das pessoas que me procuram, umas mais relevantes publicamente, outras menos. E não aprecio a estratégia da mentira. Por razões pessoais, éticas, e porque normalmente dão mau resultado. Como diz o meu grande mestre José Manuel Galvão Teles: “Ajuda muito um bom advogado, ajuda ainda mais que o cliente tenha razão.”
É impressão minha ou uma estratégia que usa recorrentemente é a de tentar ilibar o seu cliente culpando outro, deixando a dúvida no ar?
Não, de todo.
Aconteceu com Manuel Vicente, Hélder Bataglia…
Não tenho nenhuma estratégia de pôr clientes a culpar terceiros, mas também não tenho receio de pôr os clientes a dizerem aquilo que entendem dizer, mesmo que isso tenha repercussões para terceiros.
Alguma vez foi ameaçado por testemunhos dos seus clientes incriminarem outros?
Já fui ameaçado, já fui alvo de tentativas de condicionamento, de inúmeras sugestões e de muitíssimas mensagens para seguir um determinado caminho ou não seguir outro. Em nenhuma das vezes, mudei de rumo. Costumo dizer, aliás, porventura com alguma bravata, que tenho a certeza de que morrerei, mas não morrerei nem de parto nem de medo.
No caso do Benfica, a estratégia também não foi essa: isolar Paulo Gonçalves?
Com os dados que tínhamos, a verdade da qual estamos convictos e as provas que o processo contém, seguimos o caminho que nos pareceu o adequado para demonstrar a razão do cliente.
Se fosse ministro da Justiça, o que faria?
Teria de desafiar as corporações e os profissionais do sistema de Justiça. Todos eles. Era isso que eu teria de fazer.
Está a falar dos Conselhos Superiores?
O que defendo é que não devem ter uma maioria de profissionais desse setor. Como, aliás, o Conselho Superior da Magistratura não tem.
Porquê?
Porque é saudável do ponto de vista da pluralidade de perspetivas e da representatividade democrática.
Consegue perceber que um juiz suspeito de corrupção esteja a julgar casos de corrupção?
Consigo, porque isso decorre das normas processuais e estatutárias.
São justas?
Não lhe posso responder, porque estaria a meter-me num caso concreto, tirariam conclusões sobre esse caso e a minha opinião sobre ele.
A Operação Marquês é o processo do século?
Sei lá eu, ainda estamos em 2019! É um processo importante, com relevo, mas dá-se-lhe excessiva importância do ponto de vista mediático. Tenho visto coisas que nunca vi em 25 anos de profissão.
Como assim?
Nunca vi um processo em que os juízes perdessem ou ganhassem. Quem ganha e quem perde são as partes; neste caso, dão-se os juízes como perdedores ou ganhadores.
Também nunca vimos um em que os advogados exigissem um sorteio de juízes.
Nunca vi notícias de que tribunais superiores arrasam decisões de primeira instância, e neste processo sim. Devíamos fazer um estudo mais profundo sobre as causas, as razões e os propósitos.
É muito crítico dos média.
A mediatização é um fenómeno bom, porque pressupõe informação e escrutínio, mas também tem aspetos negativos: a ultrapassagem da fronteira entre a informação e o entretenimento; o não compreender que a velocidade noticiosa não é a velocidade processual; o criar uma fortíssima presunção de culpabilidade.
Alguma vez não conseguiu ilibar alguém que tinha a certeza de que era inocente?
Já me aconteceu com alguém que ainda hoje tenho a convicção profunda de que era inocente.
Era um caso de corrupção?
Era, mas não lhe vou dizer quem era.
E já lhe aconteceu o oposto, ir para casa e pensar: “Hoje salvei o meu cliente, mas prestei um mau serviço ao País, porque esta pessoa devia ter sido condenada”?
Assim como põe as coisas, não. Nunca me aconteceu estar absolutamente ciente de que aquilo que estava a defender não era verdade e ainda assim ter vencido em tribunal. Mas aconteceu-me abandonar casos por ter dúvidas sobre se aquilo em que acreditava inicialmente era verdade. Não sigo estratégia nenhuma que me violente. Na vida de um advogado acontece tudo, sobretudo na vida de um de contencioso, porque mexemos com a vida real. Há um velho juiz que dizia a um velho procurador: “Sotor, a nossa profissão é a mais interessante do mundo. Passamos a vida a bisbilhotar a vida dos outros e ainda nos pagam por isso.”
Não tem redes sociais porque não gosta de visibilidade. Por outro lado, defende pessoas muito mediáticas. Isso não é um contrassenso?
Não tenho redes sociais só porque não tenho a mínima apetência.
Não é por pudor da exposição?
Não, é porque nada ali me atrai. Não tenho culpa se quando saio do tribunal está lá um conjunto de jornalistas porque o caso é mediático. Em 25 anos, nunca fui à televisão a um debate ou comentar um processo.
As suas performances em tribunal são muito elogiadas. Já sentiu vergonha alheia dos desempenhos de alguns colegas seus?
Já senti perante vários desempenhos profissionais a que assisti na vida, incluindo de advogados.
Diz que um advogado precisa de coragem e de criatividade. Porquê?
Criatividade no sentido em que se procura extrair da vida e da lei todas as potencialidades. Nem a vida nem a lei é a preto-e-branco. Coragem para estar disponível para o confronto, para o litígio, para a afirmação de um ponto de vista, para lidar com um cliente e para lhe explicar que o caminho A é melhor do que o B. Coragem para suportar as consequências. Quer mais coragem do que ter nas mãos a vida, o património, a liberdade, o bom-nome e a honra de uma pessoa?
É pior trabalhar com terroristas ou com corruptos?
Vou dar-lhe uma resposta que é tão provocatória quanto a pergunta. Não trabalhei nem com uns nem com outros.
Eu reformulo: pior com suspeitos de terrorismo ou de corrupção?
Não há nenhuma distinção por catálogo. Depende das pessoas.
Acha que trabalha num meio conservador?
Sim, embora muito menos do que há 25 anos. O meio é conservador, porque o Direito é conservador por natureza. E não sei se isso é naturalmente mau. Se esse conservadorismo significar um certo culto da estabilidade, é bom. O Direito e a Justiça precisam disso. Se significar uma recusa obstinada em ler o presente, em ler as mudanças, será mau. O mundo da Justiça nunca irá tão rápido como outros setores da vida.
Porquê?
Porque isso faz parte da própria realidade do Direito, do tempo que demora. A Justiça assenta muito na ideia de prudência.
Já leu decisões que o envergonham por serem tão conservadoras?
Li decisões que acho desajustadas em relação àquilo que é o quadro real em vigor e à vida real de hoje.
Ainda vai ser advogado quando tivermos conclusões no processo BES/GES?
Acredito que temos ali processo para 50 anos.
Como contorna isso?
Só faz sentido evoluirmos para um princípio da oportunidade. Uma realidade que alguns países anglo-saxónicos já têm e que nós não temos, que é, em vez de se investigar tudo, desde o casaco até à linha e à agulha com que foi costurado, escolher os casos que se investiga, com critérios transparentes e prestando contas. É a única forma de introduzir mais eficácia, eficiência e celeridade em processos que, pela sua complexidade ou pela sua extensão, demoram tempos infinitos. A obrigatoriedade legal de investigar tudo até à exaustão é incompatível com a realidade, a complexidade e algumas características da vida moderna.
Era isso que se devia estar a fazer num processo como o BES?
Não se pode fazer isso enquanto não se mudar a lei. O que defendo é uma reflexão profunda com vista a uma possível alteração legislativa. Sei que isto é muito polémico, sei que é muito contrário à nossa tradição, mas é uma questão que tem de ser enfrentada e discutida.
Vamos pensar neste processo concreto. Temos centenas de dossiês em cima da mesa, em qual é que vamos pegar?
Vamos pegar naqueles que nos parecem mais urgentes, ou mais importantes, e relativamente aos quais haja mais possibilidade de sucesso.
É frustrante para um advogado estar num processo que não anda?
É. Quanto mais não seja porque os seus clientes estão mergulhados num estado de dúvida, de limbo, de suspeita, que é absolutamente aterrorizador.
Ouvi dizer que não gosta muito de festas nem de jantares com muita gente.
Não sou muito dado ao social nem à noite, porque sou um animal diurno, por razões biológicas. A noite para mim é para descansar, nem sequer serve para trabalhar.
Deu aulas durante alguns anos. Há alguma coisa que ensinasse sempre aos seus alunos?
Sempre sugeri que fossem curiosos.
Antes de vir para aqui, liguei a colegas seus para saber curiosidades sobre si. Houve quem me dissesse que era vaidoso e também quem me dissesse isto: “Ele é o melhor de nós todos, porque é bom a escrever, bom em barra e bom a lidar com a magistratura.” Percebeu que era boa estratégia não atacar os juízes nem o Ministério Público?
Não é uma estratégia, sou genuinamente assim, o que não quer dizer que não perceba as consequências de ser assim. Sou uma pessoa que, sendo confrontacional, também sou dado a consensos, à simpatia, ao humor, a evitar fricções desnecessárias. Tenho noção de que esse perfil pode ajudar, porque o tribunal é por definição algo que envolve uma grande tensão.
Ainda se lembra do primeiro caso que defendeu?
Não me lembro. Sou um advogado monótono, estou na Morais Leitão há 25 anos. A partir do segundo ano, trabalhei no contencioso e fiz muitos daqueles casos mais pequenos que um estagiário faz.
Mas eram casos muito diferentes dos de hoje? Os paradigmas eram outros.
Quando comecei a advogar, era o direito criminal do pilha-galinhas. Os tribunais tinham essencialmente casos de cheques sem provisão, burlas, furtos, crimes contra o património, de sangue, sexuais… Com o passar dos anos, por razões que já mereciam um estudo mais profundo, juntaram-se casos de alto perfil. Pelas pessoas envolvidas, pela ressonância pública que têm e porque focam outro tipo de criminalidade: económico-financeira no seu sentido mais amplo. Tudo isto fez com que o direito criminal se tivesse tornado um aspeto central do nosso sistema de Justiça, coisa que não acontecia há 25 anos.
E um caso que o tenha marcado?
O da queda da ponte de Entre-os-Rios e o Face Oculta. O primeiro marcou pela positiva, o segundo pela negativa, e ficamos por aqui.
Por causa das condenações pesadas do Face Oculta?
Não tem necessariamente que ver com o resultado. Tem que ver com outras razões que eu um dia desenvolverei. Ainda é cedo para isso. Há casos em que não ganhei e que me marcaram pela positiva, e vice-versa. O resultado é apenas um aspeto. Há outras coisas que nos deixam memória, que nos ensinam ou que nos advertem para certos aspetos do sistema de Justiça.