Quando o leitor estiver a ler esta entrevista, já Pedro Matos estará no Iémen a tentar ajudar a salvar 300 mil pessoas em risco de morrerem à fome, nas próximas semanas. Anteriormente, o Coordenador de Emergência do Programa Alimentar Mundial (PAM) das Nações Unidas esteve na Beira, em Moçambique, na sequência da destruição causada pela passagem do ciclone Idai. À VISÃO, admite que o número de mortos poderá ficar muito acima dos 600 contabilizados até agora. Engenheiro urbanístico, Pedro Matos, 45 anos, trabalhou uma década no setor espacial até começar a aplicar as imagens de satélite ao universo da ajuda humanitária. O lisboeta soma dez anos de experiência nas Nações Unidas, com passagens pelo Sudão (Darfur), Quénia, Uganda ou Bangladesh. Já sentiu a sua vida em risco várias vezes, mas o mais dramático são as decisões que o obrigam a arriscar a sobrevivência de outros. Não hesita na hora de fazer o balanço do mandato do atual secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, e revela como os seres humanos ainda o surpreendem, nem sempre pela positiva.
Qual foi o local mais complicado onde já esteve?
No contexto de escala e de dramaticidade foi a Beira. Em termos de segurança foi, provavelmente, Dadaab, um grande campo de refugiados somalis no Quénia.
O que mais o surpreendeu no cenário com o qual se confrontou em Moçambique?
A escala da destruição. O volume de água era semelhante ao do delta da Amazónia, eram 11 metros de água em cima de uma área equivalente ao Luxemburgo, foi alucinante. E num sítio que não costumava ter água nenhuma! O voo que fizemos dois dias após o ciclone foi impressionante pela mortalidade que sugere. Mesmo nos pontos mais altos havia poucos sobreviventes, quer dizer que as pessoas subiram aos telhados, depois às árvores, e a água continuou a subir até não terem para onde escapar.
Os mortos serão muitos mais do que os 600 atualmente contabilizados?
Muitos mais. Em breve, o Governo terá uma ideia mais clara de quantas pessoas perdemos em Moçambique.
Qual foi o momento mais dramático que viveu na Beira?
[Pausa.] Ter de tomar a decisão entre alocar meios aéreos para salvamento ou para distribuir comida.
Como se decide nessa situação?
Com base numa análise sobre onde há maior probabilidade de salvar vidas. Quando os números de salvamentos se reduziram de duzentos por dia para oito ou nove, e tínhamos bolsas de centenas ou milhares de pessoas que não comiam há dez dias, começa a haver um cálculo diferente sobre onde os meios aéreos são mais bem empregados. Nalguns casos não tivemos de decidir, usámos barcos para os salvamentos e os meios aéreos para levar comida a zonas isoladas, mas noutros tivemos de decidir.
Hoje, mesmo quem está à espera de ajuda alimentar nas zonas rurais de Moçambique tem telemóvel. Isso traz um grande potencial?
Quando os migrantes começaram a entrar na Europa, só porque tinham telemóvel já não podiam ser refugiados. A primeira falácia é que um refugiado tem de ser pobre. Um refugiado é alguém que está a fugir da guerra; se a guerra acontecer num sítio com classe média, como é o caso da Síria, as pessoas fogem com os seus telemóveis. Se houver uma guerra na Europa e nós fugirmos, nós seremos refugiados. A segunda falácia é que as pessoas pobres não têm telemóvel. Ter telemóvel é muito importante. No Quénia, por exemplo, se alguém precisar de transferir dinheiro para a minha mãe que está numa zona rural muito pobre, a melhor maneira é usar o telemóvel.
Concorda com o escritor José Eduardo Agualusa quando diz que a ajuda a países como Moçambique “é quase uma indemnização”, porque são sobretudo vítimas, e não agentes, das alterações climáticas?
Nesse sentido, então, os países mais poluentes deviam ser aqueles que doam mais dinheiro e não é necessariamente assim. Se a lógica fosse essa, isentaria muitos países de apoiar – países com possibilidades, mas que se desenvolveram mais tarde. O apoio solidário de uns países para com os outros não pode ser só baseado numa espécie de fatura que é cobrada entre eles, senão temos uma lógica muito transacional, que não é a que gostávamos de ter.
Associamos a subnutrição a países em guerra ou a ditaduras, mas a fome poderá alastrar devido às alterações climáticas?
As alterações climáticas serão claramente um problema, não só porque as catástrofes naturais deixam muita gente a precisar de ajuda mas porque reduzem a quantidade de comida disponível. Por isso, podem fazer-nos perder uma boa parte dos ganhos do último século.
Recentemente, foram denunciados casos de violação de mulheres moçambicanas, cometidos por líderes de aldeias, em troca da atribuição de ajuda alimentar. Estas situações são comuns?
Quando nos chegam este tipo de casos, investigamo-los a fundo. Ainda nos encontramos na fase de salvar vidas, isso implica chegar a um sítio, deixar a comida, e ir ao local seguinte. Significa que as pessoas fazem a distribuição sozinhas ou que há um líder local que se encarrega disso. A assunção é que o líder local está de boa-fé. Em distribuições normais, nós não assumimos sequer a boa-fé, responsabilizamo-nos por distribuir. Nesta situação, entre entregar 50 toneladas por dia como deve ser ou distribuir 400, que é o que estamos a fazer, fizemos uma análise custo-benefício. Considerando que já chegámos a 1,1 milhões de pessoas, apesar de serem preocupantes, parecem ser casos isolados. A maior parte dos líderes parece estar a distribuir equitativamente a comida.
Diz-se que depois de visitar países em desenvolvimento se aprende a relativizar os problemas. É uma visão paternalista?
Não, também aconteceu comigo. Qualquer país que tenha um referencial muito diferente do nosso tem esse condão. As grandes tragédias do dia a dia chateiam-me muito menos. Essa relativização vem de ter vivido muitos anos com pessoas que se contentam com muito menos e que se chateiam com muito menos coisas do que nós.
É importante desconstruir estereótipos sobre as pessoas que vivem em países em desenvolvimento?
Sim, as ideias erradas das pessoas influenciam não só a sua capacidade de serem generosas como também a pressão que a opinião pública exerce sobre os governos, responsáveis por grande parte da ajuda. Um bom exemplo é o Darfur. Os Estados Unidos da América não tinham interesses no Sudão, mas a campanha da opinião pública norte-americana em prol do Darfur fez com que os EUA fossem dos países que mais dinheiro doaram.
Foram esses estereótipos que tentou desfazer com o projeto fotográfico The Darfur Sartorialist, que retratava a paixão dos sudaneses pela moda?
Sim, foi uma tentativa de mostrar o confronto com os meus estereótipos quando cheguei ao Darfur e descobri que aquelas pessoas eram muito menos despojadas do que eu imaginava. Tinham as suas vidas, levavam os miúdos à escola, juntavam-se no café e, no caso das mulheres, – o Sartorialist também tem homens, mas sobretudo as mulheres – eram muito vaidosas. A vaidade existe mesmo no meio das provações mais extremas. A reação inicial à exposição era “que vestido tão engraçado, mas ela é africana, mas ela é muçulmana, mas ela é refugiada”. Esse choque é muito saudável, confronta-nos com as nossas certezas.
Ao contrário da do Darfur, a crise alimentar no Iémen está a ser ignorada?
O mundo está bastante chocado, mas ainda não se apercebeu da escala da tragédia. O Iémen tem 28 milhões de pessoas e 20 milhões estão em insegurança alimentar. Trezentas mil estão à beira de morrer, nas próximas semanas. As imagens são tão chocantes que acho que as pessoas se abstraem e mudam de canal, mas fechar os olhos não faz com que desapareçam. Só o PAM precisa de 176 milhões de dólares, por mês, para alimentar o Iémen.
Esteve no Bangladesh, em Cox’s Bazar, que acolhe a população rohingya, em fuga do Myanmar. Como se vive no maior campo de refugiados do mundo?
Um milhão de pessoas no mesmo sítio é muito mais prático para fornecer educação, saúde ou alimentação. O campo de Kutupalong tem uma densidade de pontos de distribuição de comida e de centros de saúde que nunca aquelas pessoas sonharam ter quando viviam em Myanmar. Muitas daquelas crianças foram à escola pela primeira vez no campo. Claro que não estou a advogar que toda a gente devia ser deslocada, as pessoas chegam altamente traumatizadas, muitas delas viram crianças serem assassinadas de forma bastante cruel, muitas das mulheres foram violadas… Claramente, se lhes perguntássemos se elas preferiam mais um centro de saúde ou não terem sido violadas, a resposta é evidente.
Já sentiu a sua vida em risco?
Estive debaixo de fogo um par de vezes, mas esses nem foram os momentos mais dramáticos da minha vida. Em Dadaab, implementámos mecanismos de controlo da ajuda humanitária, e alguns elementos dentro do campo não ficaram muito satisfeitos. Alguns dos colegas quenianos, e eu, fomos ameaçados de morte. Não perdemos ninguém, mas foram meses muito difíceis.
A ONU costuma ser vítima das teias de corrupção dos países que apoia?
Não creio que sejamos cúmplices…
Mas podem ser vítimas…
A comida é vista como uma arma. Somos muitas vezes pressionados a alimentar este grupo e não aquele por razões políticas. Recusamos sempre. Preferimos não assistir ninguém a sermos instrumentalizados. As nossas perdas, normalmente por deterioração dos bens, são de um por cento. A maior parte das vezes que tive de lidar com desvios de comida foi porque desapareceram sete sacas de milho em cinco mil. A maioria das notícias sobre o mau uso de comida surge depois de a entregarmos às comunidades.
Trabalhar tão próximo de autoridades locais que, muitas vezes, não têm a vossa experiência dificulta o vosso trabalho?
A maneira antiga de prestar ajuda humanitária era substituirmo-nos aos governos. Agora, criamos muito know-how com os governos, é mais lento do que se fizéssemos tudo sozinhos, mas não vemos isso como um atraso, é um passo necessário para não nos perpetuarmos nos países onde trabalhamos.
Que balanço faz do mandato do atual secretário-geral da ONU?
António Guterres é uma pessoa com uma capacidade política incrível, capaz de sair de uma negociação com os dois lados contentes, mas o mundo que ele tem de gerir é muito diferente do que existia. Não havia uma guerra fria como a que está a acontecer entre a Rússia e os Estados Unidos da América. Se tivesse sido secretário-geral há dez anos, teria tido muito mais protagonismo e muito mais vitórias do que agora. Hoje, temos cada vez menos consensos. É mais difícil ser secretário-geral num mundo assim.
Surpreende-o mais a maldade ou a bondade humana?
A maldade. É difícil entender como algumas pessoas chegam a níveis de crueldade tão grandes e como alguns países têm níveis de mortalidade tão elevados, por razões completamente evitáveis. Também há demonstrações de bondade incríveis. Nós achamos, no mundo latino, que somos os povos quentes da Europa, mas quando comparados com muitos dos que tenho visto, não somos assim tão generosos. No Sudão, um país que está sob sanções do Ocidente há décadas, ninguém acha que por eu ser ocidental sou um agente do mal, enquanto na Europa, por haver alguns muçulmanos que são más pessoas, todos os muçulmanos são vistos dessa forma. Esse tipo de generalização é muito mais típica dos países ocidentais do que dos países que vivem com muitas dificuldades e que, se calhar, teriam mais razões para generalizarem e demonizarem o outro.