Trabalha há mais de 11 anos no New York Times, onde escreve sobre incêndios florestais e urbanos. Autora do livro The Fire Line, documentou o fogo que vitimou 19 pessoas em 2013 no Arizona, onde vive. É uma das especialistas na matéria num país onde os incêndios florestais são constantes e ao longo de todo o ano, e onde são tratados como tal. À VISÃO, comenta a tragédia de Pedrógão, que cobriu para o jornal americano, e explica que, perante a inevitabilidade dos fogos nalgumas regiões do planeta, é urgente investir a sério na prevenção.
Os fogos florestais são inevitáveis num país quente e seco?
Acho que sim, por duas razões. Uma é a mãe natureza. Todos os países, sejam eles secos ou húmidos, quentes ou frios, têm tempestades. Muitas das tempestades têm raios e um raio é um ponto de ignição. É como um fósforo: se toca numa parte da floresta que esteja seca, pode causar uma pequena chama. Quanto mais quente e seco o local, mais rápido alastra. E a outra razão, claro, é o ser humano. Não só há casos de incêndios causados propositadamente, como também incêndios acidentais.
E uma tragédia como esta de Pedrógão, também é inevitável?
Eu já me fiz essa pergunta muitas vezes. Podemos aprender ou modificar os nossos comportamentos, a maneira como respondemos aos fogos florestais, e assim tentar evitar a morte de pessoas, sejam elas bombeiros ou de residentes.
E podemos evitar um número de mortes tão grande como o que aconteceu em Portugal?
Sim. O que eu ouvi de vários bombeiros e cientistas é que há dois problemas. O primeiro é que muitas vezes as pessoas não respeitam o incêndio. Estão em casa, a ver o incêndio a queimar, e não querem sair, mesmo quando a polícia ou os bombeiros dizem para abandonarem as suas casas. A segunda razão é que a influência da natureza muitas vezes transforma uma situação que parecia estar sob controlo numa situação descontrolada. Quando o vento sopra e muda de direção, se os bombeiros estão posicionados, vamos supor, a norte do incêndio, que está a caminhar nessa direção, e o vento muda e começa a soprar na direção oposta, ele vai empurrar as chamas na direção oposta. E as pessoas que estavam atrás do incêndio ficam agora na frente. Por isso é muito difícil planear de modo a evitar todas as mortes. Mas é possível planear melhor para que se evite uma tragédia como esta.
Muita gente que esteve no combate deste fogo referiu que foi imprevisível. Mas não é a imprevisibilidade o que há de mais previsível num fogo florestal?
Exatamente. Não há um incêndio igual ao outro. Por várias razões: a natureza, a vegetação, as condições da terra, o comportamento das pessoas envolvidas. Uma das coisas que é diferente em Portugal e em muitos países europeus do que acontece aqui nos EUA, principalmente do oeste americano, como no Arizona, onde os incêndios são constantes, é que existe uma consciencialização maior por parte da população e um treino maior dos bombeiros. Uma das questões é o facto de as povoações do interior estarem cada vez mais vazias. E quando se esvaziam as povoações, há menos pessoas disponíveis para serem professores, polícias e bombeiros. E falta também treino constante, como existe aqui nos EUA, exatamente por ser uma realidade permanente do oeste americano. Muitas vezes contamos com bombeiros que sabem responder a um incêndio numa casa ou num edifício, mas que não conhecem o comportamento de um incêndio numa área florestal, com vegetação, que é completamente diferente.
Diz num artigo de opinião no NYT que um incêndio urbano combate-se com água, mas um florestal não. Apesar disso, a água continua a ser a principal arma dos bombeiros em Portugal. Como se combate então um incêndio florestal?
Muitas vezes vemos bombeiros que estão nas bordas do fogo com mangueiras a atirar água ao incêndio – a única coisa que isso faz é retardar o avanço das chamas. A outra imagem comum é um avião ou helicóptero a lançar uma mistura química ou água para retardar o incêndio. O que não se vê, até porque é muito perigoso para os repórteres, é o trabalho dos bombeiros que estão a cavar o que em inglês se chama “fire line”, uma linha onde limpam tudo o que pode queimar, desde raízes, troncos e galhos de árvores, o combustível florestal. A única maneira de apagar um incêndio é chover muito ou eliminar-se o combustível que o está a alimentar, removendo-o. O que muitos estados americanos estão a aperceber-se é que esses trabalhos têm de ser feitos durante todo o ano, e não só no verão quando a temperatura está mais quente. Deve-se enviar equipas de bombeiros para minimizar a quantidade de vegetação que há nas florestas para que, quando os incêndios ocorrerem, haja menos vegetação para queimar e assim evitar fogos tão grandes e tão catastróficos.
Em Portugal costuma dizer-se que o fogo combate-se de inverno e não no verão, mas que não se costuma pôr em prática. A prevenção é mesmo essencial?
Sim, e deve fazer-se no inverno, fora de época. As temporadas de incêndios começam na primavera e vão até ao início do outono. Terminada essa temporada em outubro, o ideal seria que se utilizassem os bombeiros para começar a fazer esse trabalho de prevenção. Mas também as pessoas que residem na comunidade. A população tem um papel a cumprir: quem mora numa comunidade rural, à beira de uma floresta, deve limpar a área em volta da sua propriedade, construir uma linha de defesa para que a sua casa tenha uma maior possibilidade de ser protegida num incêndio.
Nesta tragédia em Portugal, muitas pessoas fugiram de casa e acabaram por morrer na estrada. Numa região onde os incêndios são comuns e podem ser muito perigosos, deveria haver planos de emergência que as populações deviam conhecer, como por exemplo se faz no Japão com os terramotos, onde as pessoas sabem exatamente o que fazer em caso de catástrofe?
Sem dúvida alguma, os terramotos e tsunamis no Japão, tal como os furacões que temos aqui nos EUA, são ótimos exemplos. O problema é que os incêndios florestais normalmente não são tratados ao mesmo nível desses outros desastres naturais, e por isso os governos e entidades cívicas não têm o mesmo nível de preparação. Então ocorrem sempre emergências de última hora: “O incêndio está aproximar-se, vamos sair!”. Se toda a gente sai ao mesmo tempo com o seu carro e pela mesma estrada e se uma árvore cai, ou se um carro tem um problema – porque muitas vezes o fumo afoga o motor e o carro para de funcionar –, basta isso para o engarrafamento se formar. Muitas vezes os países ou as comunidades só aprendem depois de uma grande tragédia. Da mesma maneira que quem mora em São Francisco ou no Japão tem uma preparação para o caso de haver um terramoto, as pessoas que moram numa área onde há propensão para incêndios devem ter um plano de preparação para o que devem fazer, como fazer e quando fazer para quando o incêndio começar.
Na região que ardeu, e grande parte de Centro e Norte de Portugal, há duas árvores dominantes, o eucalipto e o pinheiro.
O eucalipto é uma importação da Austrália, e apesar de cobrir uma área mais pequena que o pinheiro tem sido apontado como o principal responsável.
Mas a culpa é de uma espécie ou do ordenamento e da densidade da floresta como um todo?
Se tivesse de escolher um fator, diria que a densidade é o mais importante. Existem três tipos combustíveis, o que chamam de fuel fino, ou seja a vegetação baixa; o fuel em escada, a vegetação que está a médio porte e que transporta o fogo do chão para as árvores, e as próprias árvores. Numa floresta de eucaliptos em que o chão da floresta está limpo, se um incêndio começar os bombeiros têm tempo de chegar e cercar o incêndio. Se o chão tiver galhos, árvores mortas, folhas secas, lixo florestal… todas estas coisas fazem com que o fogo se espalhe muito rapidamente, e se houver vento, baixa humidade, temperatura alta – tudo isto é uma combinação explosiva. Dizer que a culpa é do eucalipto é injusto, é uma maneira errada de olhar para o problema. Os grandes incêndios florestais ocorrem em florestas que estão sobrecarregadas, que estão mal tratadas e que ao longo do tempo não foram limpas nem por incêndios nem por humanos. Quando é assim, os bombeiros não podem fazer nada – só lhes resta aceitar que grande parte do terreno vai arder até que eles possam controlá-lo.
Há alguma forma, a curto prazo, de atacar este problema? É isso que preocupa as pessoas neste momento. Morreram 64 pessoas, estão quase 200 feridas e o verão ainda mal começou.
A região que queimou não tem muito com que se preocupar, não há mais nada para arder. Noutras regiões semelhantes, a única opção seria as comunidades começarem a fazer o trabalho de limpeza, mas isso não é coisa para se fazer numa semana ou em alguns dias… é um processo a longo prazo. E mesmo assim não ficam totalmente seguros. Ajuda cortar as árvores e limpar a vegetação em volta das casas: dessa forma pelo menos proporciona-se alguma proteção da propriedade, torcendo para que em caso de incêndio não haja temperaturas muito altas nem ventos muito fortes. Mas não há como controlar… Estamos com verões muito quentes o clima cada vez mais está a trazer ondas de calor mais fortes e mais longas – é concorrer contra a natureza.
Em Portugal, o período crítico de fogos é de 1 de julho a 30 de setembro. Ainda faz sentido, agora que o clima está cada vez menos previsível, ter períodos definidos por lei em vez de ter flexibilidade para adaptar esses períodos às condições climatéricas?
Esse sistema que tem funcionado há décadas, tanto aí como aqui, de ter o que chamamos de “temporada de incêndios” já não funciona hoje, com mudanças climáticas e temperaturas altas como temos e florestas mal tratadas há décadas. A melhor maneira de prevenir o incêndio catastrófico é fazer uma manutenção constante nas florestas: tem de se pensar no trabalho do bombeiro florestal não só para apagar o incêndio mas também para o prevenir. Qualquer estado ou país não deve pensar no incêndio como o que acontece em determinada época do ano, mas sim como uma epidemia. No Brasil, por exemplo, temos dengue no verão porque chove muito. Como é que se previne? Educa-se a população para que quando chega o verão as pessoas não deixarem a água parada.
Em Portugal os bombeiros são uma força voluntária, que muitas vezes vive de doações para conseguir comprar equipamento. Isso é uma situação comum no resto do mundo?
Os bombeiros florestais no Brasil trabalham a tempo inteiro para o Governo Federal e concentrados principalmente na região da Floresta Amazónica. Nos EUA há dois tipos de trabalhadores. Há os de temporada, contratados de abril a outubro cujo trabalho é combater incêndios, viajando de estado em estado, num trabalho não de prevenção mas de supressão. E há outros que são empregados durante todo o ano.
Nenhum desses é voluntário?
Todos eles são empregados pagos com salários, horas extra. Não é como em Portugal onde as equipas são voluntárias. Cada vez menos se vê aqui nos EUA bombeiros voluntários, porque normalmente as forças voluntárias estão nas áreas rurais e as áreas rurais são as que precisam de bombeiros treinados para combater os incêndios florestais. Dificilmente vemos um incêndio numa estrutura urbana que leve mais do que um dia a queimar, já o incêndio florestal não é uma coisa que comece e acabe rápido: normalmente leva dias até estar sob controlo e depois totalmente apagado.
Tem conhecimento de alguma tragédia deste calibre provocada por um incêndio florestal, em todo o mundo?
Não tenho. Quando começou o incêndio em Portugal lembrei-me dos incidentes em Fort McMurray no Canadá no ano passado, mas não houve esse número de mortos, a destruição da cidade foi muito grande mas as pessoas salvaram-se [dois mortos, com 2400 casas destruídas]. A última vez que tivemos dezenas de mortes aqui nos EUA foi nos anos 30, quando vários fogos florestais na parte noroeste dos EUA se juntaram e transformaram num enorme incêndio. E a maioria dos que morreram foram voluntários que estavam a apagar os fogos. Não ocorreu nos últimos 100 anos um incêndio florestal aqui nos EUA ou noutra parte do mundo onde tantas pessoas tenham morrido. É realmente uma tragédia. 64 mortes é um número difícil de se imaginar que ainda pudesse acontecer. Temos de trabalhar de uma maneira mais assídua para que todos se consciencializem do risco e da necessidade de ter um projeto de proteção e prevenção florestal.
Entrevista publicada na VISÃO 1270 de 6 de julho