No início da década de 2010, o ceticismo reinava quanto à viabilidade das empresas cujo modelo de negócio se baseava no software open source. O consenso dos investidores e analistas era de que, se uma empresa permitisse que o resultado do seu trabalho pudesse ser livremente copiado, dificilmente teria uma posição de destaque na indústria do software.
Uma década volvida, podemos afirmar que estas projeções não se concretizaram. Pelo contrário, o crescimento deste segmento da indústria do software tem sido meteórico. Inúmeras empresas privadas que estão por detrás de projetos open source conseguiram investimentos de centenas de milhões, tais como a Elastic NV ou a Confluent que, atualmente, são já empresas públicas com valorizações bolsistas de 15 mil milhões e 17 mil milhões de dólares, respetivamente.
Mas nenhum caso ilustra melhor a força da inovação usando o modelo open source para o mundo corporativo que a MongoDB, Inc.. Com uma valorização bolsistas de 32 mil milhões de dólares e 27000 clientes a nível global, entre os quais se contam Google, Barclays, Verizon, SAP, Electronic Arts, a empresa de software de base de dados é um caso de sucesso.
Mas quais são as razões do sucesso da MongoDB num mundo capitalista, onde tradicionalmente o segredo é a alma do negócio?
Don’t trust, verify
De uma forma geral, um projeto de software considera-se open source se o seu código fonte for publicado de forma gratuita e livre, com a permissão para que seja distribuído, modificado e utilizado por qualquer pessoa ou empresa terceira.
Ainda hoje, existe uma resistência generalizada em compreender como as licenças open source podem ser um valor acrescentado para uma empresa, uma vez que abdicam das vantagens competitivas relacionadas com o segredo do negócio. No entanto, os benefícios são significativos face às licenças proprietárias:
● Um programador ou equipa de programadores pode adaptar o código fonte às suas necessidades e, de forma opcional, partilhar essas melhorias com os titulares do projeto original;
● Deixa de ser necessário confiar na equipa ou empresa que desenvolveu o projeto de software, uma vez que é possível auditar a qualidade e segurança do código fonte;
● A facilidade de acesso ao código aberto por parte de entusiastas e profissionais contribui de forma determinante para o sucesso de um projeto, especialmente nas fases iniciais.
Porém, as licenças open source não são todas iguais, tendo diferentes limites sobre as liberdades concedidas a terceiros. Em alguns casos, qualquer código fonte escrito utilizando como base projetos open source tem de ser também open source, o que limita a sua utilização corporativa (ex: GPL – General Public License).
Noutros casos, esta obrigatoriedade de manter a licença open source apenas se aplica se o projeto de software original for alterado e divulgado (ex: LGPL – Lesser General Public License).
Mas, de acordo com um estudo realizado em 2019 pela Synopsis, as licenças mais comuns são as mais permissivas (ex: MIT/Apache), em que existe a liberdade de utilizar e modificar o código e até incluir esse código fonte em projetos de software proprietário.
O que nunca está incluído nestas licenças de software livre é a livre utilização da marca. A marca registada continua a ser um direito do titular original do projeto, sendo sujeita às mesmas restrições de utilização de qualquer outra marca registada.
A evolução do modelo de negócio open source ao longo do tempo
Estas licenças de software open source foram desenhadas para uma era diferente, uma vez que os seus requisitos não anteciparam o advento da cloud.
Nos anos 80 e 90, o software era distribuído essencialmente através de media removível (disquetes, cartuchos, CD-ROM, etc.). Este ato de redistribuição de software, onde muitos dos requisitos da licença tinham de ser cumpridos, eram bem definidos no tempo e no espaço.
Com o advento e generalização dos serviços cloud no início da década de 2010, a oferta de soluções de hospedagem e planos de suporte dos quais muitos destes projetos dependiam foi, em grande medida, suplantada pela concorrência de empresas cloud com mais recursos e economias de escala muito mais elevadas.
Além disso, nos provedores de serviço cloud, o código do software open source corre por detrás da infraestrutura do provedor, pelo que tecnicamente a necessidade de cumprir muitas das cláusulas relativas ao ato da distribuição presentes nas licenças deixa de se aplicar.
A inovação do MongoDB não se fica pelo produto
Em 2017, e após 300 milhões de dólares de investimento próprio, a recém-lançada em bolsa MongoDB Inc. deparou-se imediatamente com a concorrência de empresas cloud como a Amazon Web Services, Google Cloud e a IBM. No entender da MongoDB Inc, estas empresas utilizavam como base o trabalho da MongoDB, adicionavam funcionalidades que ajudavam na integração com os seus ecossistemas proprietários, sem que houvesse a reciprocidade de contribuições devida.
Devido a esta situação, a MongoDB Inc. alterou em 2018 a licença do seu software de base de dados, colocando novos limites à licença e causando polémica entre a comunidade purista do open source, que não via com bons olhos os retrocessos na liberdade de utilização do software. Mas ao invés de simplesmente fechar o código fonte e exigir o pagamento indiscriminado a todos os utilizadores, a MongoDB Inc. optou por uma abordagem diferente.
O código fonte continuaria a ser distribuído publicamente. No entanto, a licença adiciona uma cláusula em que se alguma empresa quiser oferecer o software do MongoDB como um serviço, terá de pagar uma licença comercial ou fornecer o código fonte tal como ele corre na sua própria infraestrutura.
Sendo a segunda hipótese inviável para muitos gigantes do software, a jogada da MongoDB criou uma fonte de receita estável e duradoura que, em grande parte, suporta a empresa e assegura a continuação do projeto.
O open source já não é o que era
A comunidade open source está dividida quanto ao mérito deste novo tipo de licença. Os limites impostos sobre como o open source pode ou não ser utilizado são uma consequência dos nossos tempos e não se coadunam com os idealismos que estão na raiz de outros projetos open source importantes, como o Linux ou o Open Office.
Olhando para o repositório público do código fonte da base de dados MongoDB, vemos que mais de 90% das contribuições são da autoria de colaboradores da própria empresa. No entanto, os restantes 10% provêm de utilizadores (normalmente outras empresas que dependem do projeto para a sua empresa). Estes 10% de contribuições externas, seriam, numa realidade em que o código não se encontra disponível, pedidos de melhoria ou correção que iriam sobrecarregar o staff da MongoDB.
Outro fator para o sucesso da MongoDB é a possibilidade de efetuar auditorias de segurança ao código por qualquer cliente antes de utilizar o software. As bases de dados são elementos críticos de qualquer sistema, e a possibilidade de auditar o código sem autorização da empresa que o criou é uma vantagem enorme face à concorrência que vende software proprietário.
Em conclusão, a MongoDB soube aproveitar o sucesso dos seus tempos iniciais, que foi obtido em grande parte por ser uma empresa que trabalha com open source, e soube adaptar-se aos novos tempos inovando não só ao nível do produto, mas também ao nível do licenciamento. Estas alterações podem não satisfazer os puristas do open source, mas foram uma forma realista de trazer o open source para os dias de hoje e formaram a base para uma empresa moderna, transparente e incrivelmente bem-sucedida.