As grandes crises têm a capacidade de fazer sobressair o melhor e o pior de cada um de nós. Felizmente, nestas últimas semanas foram muitos os bons exemplos do melhor. Tanto na linha da frente desta guerra, onde os profissionais na área da saúde têm trabalhado de modo incansável, como em outras áreas fundamentais para garantir o funcionamento da sociedade, com destaque para quem tem apoiado os mais fragilizados e mais expostos a este inimigo invisível.
Há muita gente que ‘deitou a mão à massa’. Uma expressão muito querida na comunidade dos makers. Dos fazedores que têm por hábito criar, adaptar e reparar em vez de, simplesmente, comprar. Apesar de este grupo estar muitas vezes associado à criação com base em ferramentas tecnológicas, com destaque para a impressão 3D, makers são todos aqueles que fazem. Somos makers quando, em nossas casas, recuperamos um móvel em vez de o mandar para o lixo, transformamos umas velhas calças nuns ‘novos’ calções ou, como tem acontecido muito nos últimos tempos, fazemos pão em vez de comprá-lo no supermercado. Naturalmente, o hábito de criar tem inúmeras vantagens, não só para a economia ou para o ambiente, mas também relacionadas com o aguçar do engenho. Quando fazemos, aprendemos. Não faltam bons exemplos das vantagens de integrar este ‘mãos à obra’ nas escolas.
Há outra característica associada a quem está habituado a fazer: encarar momentos de crise, como o que vivemos, como um desafio. Em vez de paralisarem, de se afundarem nos sofás, procuram formas de ajudar. No caso específico do movimento dos makers, fazê-lo em comunidade e para a comunidade. E foi impressionante a reação da comunidade dos makers esta crise. Desde os ‘encartados’ até aos recém-chegados ao movimento.
Começo pelo incrível exemplo das viseiras. Poucos dias após a Covid-19 ter sido declarada pandemia, um conhecido fabricante checo de impressoras 3D, a Prusa, criou e disponibilizou gratuitamente um desenho 3D que permitia criar suportes para viseiras. Como é típico desta comunidade, que normalmente trabalha em open source (especificações abertas para poderem ser utilizadas e adaptadas por todos), este projeto foi feito de modo a garantir uma solução de recurso e baixo custo. Aos suportes impressos em 3D apenas é necessário adicionar uma folha de acetato transparente para a proteção do utilizador e um elástico para prender a viseira à cabeça. Fácil e barato. Um desenrascanço usando uma palavra muito nossa. Rapidamente surgiram muitas interações com base nesta ideia. Infelizmente, nem todos perceberam o conceito do open source e houve algumas notícias de instituições e empresas que anunciaram ter inventado viseiras quando, na realidade, estavam a usar este projeto como base. Uma pequeníssima nódoa que não afeta o espírito global do trabalho conseguido.
Em Portugal, rapidamente foram criadas muitas centenas destas viseiras entre makers individuais, que usaram as suas impressoras 3D e perícia, instituições de ensino e empresas. Proteções que acabaram oferecidas a quem mais precisava, quase sempre na ótica de proximidade. Por por exemplo, bombeiros e funcionários de lares, do sul ao norte, incluindo ilhas, já são protegidos por este meio.
O grupo Movimento Maker – Portugal foi ainda mais longe e, após o desenvolvimento de uma viseira com base em muitas interações e envolvimento de profissionais de saúde, conseguiu industrializar o processo, como nos contou Bruno Horta (https://visao.sapo.pt/exameinformatica/2020-03-30-covid-19-viseiras-de-protecao-criadas-por-makers-ja-sao-fabricadas-em-serie-em-leiria/), um grande impulsionador do projeto. Tudo aconteceu em dias em vez de meses: de uma produção na ordem das centenas, passou-se para uma produção na ordem dos vários milhares. Muito importante: todo este projeto é assente no voluntariado dos envolvidos. As viseiras têm sido entregues gratuitamente, também graças a muitas ofertas de material e outros recursos, tanto de indivíduos como de empresas. Quando se explora a página de Facebook do Movimento Maker – Portugal, não há como não nos emocionarmos com a gigantesca alma dos envolvidos. De quem passou noites em branco consecutivas a imprimir viseiras, a testá-las e a melhorá-las. De quem não tendo impressoras 3D ajudou de outro modo, com a recolha de fundos, com a oferta de material ou de mão de obra para montar as viseiras. Visitem https://www.facebook.com/groups/MovimentoMakerPortugal/. Vale a pena, garanto.
Como referi, esta crise fez surgir novos makers. Continuando nos exemplos portugueses – há muitos outros espalhados por tudo o mundo –, veja-se o que está a acontecer com o Projeto Open Air (https://visao.sapo.pt/exameinformatica/noticias-ei/hardware/2020-04-01-portugueses-criam-ventilador-open-source-project-open-air/), uma iniciativa de João Nascimento, que já juntou mais de 12 mil voluntários. Um projeto que já apresentou uma prova de conceito de um ventilador com especificações avançadas e, não menos importante, que pode ser construído utilizando apenas recursos disponíveis em Portugal e com um custo incomparavelmente mais baixo ao dos ventiladores comerciais. João Nascimento sublinha que esta não é uma solução certificada, que deve ser vista apenas como um recurso de emergência. Em linha com o que foi feito em Itália com adaptação de máscaras de mergulho: são adaptações, não são certificadas, mas a verdade é que salvam vidas.
Devido à complexidade do sistema, o Projeto Open Air é um bom exemplo de uma ideia que pode ter consequências após vencermos o novo Coronavírus. Isto porque prova de modo muito prático aquilo que todos já sabíamos: podemos ser muito mais rápidos e eficientes a desenvolver soluções se trabalharmos em conjunto e, lá está, em esprito open source. Na área da saúde são mais do que conhecidos os estudos que apontam para o crescimento galopante dos custos dos tratamentos e da prevenção. A forma como tantos cientistas, investigadores e criadores em geral têm trabalhado em conjunto, sem grandes preocupações com patentes e exploração comercial, pode muito bem significar que nada vai voltar a ser o mesmo.
Resta esperar que os responsáveis, a começar pelos políticos, saibam tirar partido destes movimentos e criar os mecanismos para que perdurem e floresçam após esta crise. E, já agora, considerando que as autoridades têm, e bem, agradecido a grandes empresas pelas doações, também faria sentido um agradecimento público a estes voluntários.
(Artigo originalmente publicado na Exame Informática Semanal 143, de 3 de abril de 2020)