Será a informática a solução para filósofos, antropólogos, professores, ou economistas no desemprego? Manuel Heitor, ministro da Ciência, Tecnologia Ensino Superior, lembra que já são vários os casos de sucesso de reconversão profissional, mas sublinha que as denominadas ciências sociais também têm muito para dar às tecnologias: «hoje, mesmo as sociedades digitais, não vivem só de engenheiros informáticos». Em véspera de apresentar um balanço de ano e meio de Incode2030, Manuel Heitor antevê, numa breve entrevista, as metas de um programa que abriu portas à Inteligência Artificial dentro fora da Administraç~ºao Pública e já levou ao aumento de 30% dos alunos inscritos em Cursos Técnicos Superiores Profissionais (perfazendo 1715 estudantes). Na quarta-feira, o ministro deverá anunciar um investimento de 23 milhões de euros para reforço das competências digitais de profissionais e consumidores.
Vai mudar alguma coisa no Incode2030?
O Incode2030 é uma iniciativa nacional para a promoção das competências digitais, que tem como objetivo levar Portugal a assumir a liderança em determinadas áreas a nível europeu. Posso dar como exemplos o aumento do número de pessoas que usam frequentemente a Internet, levando a que esse número passe de 60% para 90%… ou triplicar o número de especialistas em competências digitais. Vivemos hoje numa sociedade e numa economia dominada por competências digitais. Acelerar o desenvolvimento destas competências é o objetivo desta iniciativa lançada em 2017, que tem um espectro largo, que vai da inclusão social àquilo que passa nas famílias, nas autarquias, na educação e na qualificação. Este é um fórum anual que arrancou no ano passado, e é uma forma de mapearmos o que está a ser posto em prática, com um leque de atores muito diversificado, que vai das autarquias, às empresas, às escolas, ou aos centros de investigação no contexto nacional e também com referências europeias. Este ano vamos anunciar um novo pacote de investimento que prevê 23 milhões de euros para o período entre 2019 e 2021. É um investimento para as áreas da inclusão. da formação e da qualificação… sobretudo para a qualificação de adultos. Também vamos fazer o lançamento de uma nova estratégia para a Inteligência Artificial (IA) que é especialmente crítica, não só em termos sociais, mas também económicos, quando se trata de estarmos alinhados com o que de melhor se faz na Europa na área do processamento de informação. Também vamos anunciar e alargar as redes regionais de qualificação e especialização digital, trazendo empresas e instituições politécnicas para desenvolverem ofertas quer na formação inicial de adultos, quer na formação pós-graduada. Se nos queremos comparar a nível europeu, teremos de formar uma equipa de peritos que passam a vir todos os anos a Portugal, ajudando a avaliar o que de melhor se faz aqui e ajudando a alinhar o desenvolvimento das competências digitais com o que se faz na UE.
Pelas suas palavras, verifica-se que há uma aposta na reconversão de carreiras… será que um antropólogo pode dar um bom informático?
Por que não? Há casos concretos em que isso aconteceu. Não se trata só fazer com que o tal antropólogo dê um bom informático. O desenvolvimento de novos negócios e de novas empresas passa, sobretudo, por reunir pessoas com competências diferentes, que estejam orientadas para o desenvolvimento de novos produtos e processos que têm uma base digital. Mas hoje, mesmo as sociedades digitais, não vivem só de engenheiros informáticos. Necessariamente temos de alargar o leque de competências em todas as áreas e facilitar projetos mobilizadores. A reconversão de desempregados passa muito por chegar a pessoas de todas as áreas…
Quais as metas previstas para essa reconversão de profissionais?
Muitos destes programas têm sido conduzidos dos centros de formação do Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFT) e outros com empresas. Temos uma experiência nos últimos dois ou três anos com uma grande multinacional e outras empresas do Fundão que incluiu processos de adaptação e reconversão de competências. Mas mais do que a reconversão também se pretende alargar e aprofundar novas competências. Não é apenas tornar filósofos ou psicólogos em programadores… é também ter programadores que têm formação inicial noutras áreas – sejam elas a filosofia ou a psicologia ou as artes. As novas competências digitais podem ser especialmente importantes – da saúde à agricultura. A questão da reconversão passa por adicionar novas competências e não eliminar as competências antigas… A formação nos politécnicos já temos mais de 12 mil estudantes em formações curtas. A maioria desses alunos encontra-se em formações para a área digital. Os números têm de ser vistos com cuidado devido ao contexto regional.
A estratégia para a IA já levou à apresentação de 15 projetos… será que a IA vai ter a capacidade de melhorar os serviços prestados pela Administração Pública (AP)?
Não é só para a AP! Também poderá ser aproveitada nas empresas, no mercado de trabalho e na formação de pessoas, ou na investigação. A IA é hoje usada nas mais variadas áreas – da agricultura aos hospitais, das empresas de pescas às de hotelaria. Mais uma vez, só faz sentido ter uma estratégia de IA alinhada com os restantes países europeus. Muitos países europeus têm vindo a implementar projetos de grande interesse ao nível empresarial… é uma forma de mobilizar os empregadores, as empresas e os empreendedores para o desenvolvimento de projetos empresariais ao mesmo tempo que se melhora a AP. Essa estratégia já conta com um conjunto de projetos inéditos na AP que têm por objetivo de dar, sobretudo, capacidade às entidades públicas de processarem dados, mas temos de continuar o processo com o setor privado e com o setor da formação… apostando essencialmente para dar formações curtas que vão da formação inicial à formação especializada. A estratégia passa por mobilizar atores em torno de grandes objetivos no contexto europeu.
Essa mobilização será feita pela via do financiamento ou através de parcerias?
Nalguns casos será com projetos comuns, e noutros com financiamento que até já pode estar em curso. Vamos abrir uma nova linha para projetos mobilizadores, alguns deles em contexto internacional. Sobretudo queremos capacitar empresas e centros de investigação portugueses para concorrerem financiamentos do futuro Programa Digital Europeu.
A IA não vem tirar trabalho aos humanos… nomeadamente aos profissionais mais qualificados?
Não. Só pode ser um estímulo à qualificação. Os processos de IA podem ser uma oportunidade importante para o crescimento do emprego, apesar de também poderem constituir-se como uma ameaça de criação de concentração de empregos em algumas zonas. A única forma de levar a IA a gerar mais emprego é dar mais formação. São processos que exigem formação. O desafio, que é um bom desafio, é formar mais pessoas e ter mais competências e estar sempre a fazer formação juntamente com a criação de postos de trabalho com as empresas. E por isso esta formação tem de ser cada vez mais feita em estreita colaboração entre empregadores e as instituições de formação, para garantir a adaptação do mercado de trabalho e dos empregadores às novas soluções. Se estivermos associados à criação de conhecimento poderemos associar-nos à criação de postos de trabalho. Se só usarmos o conhecimento desenvolvido pelos outros, as ameaças para o mercado de trabalho tornam-se efetivas. Não temos outro desígnio, senão fazer mais formação e investigação juntamento com quem faz os investimentos.
Não faria sentido criar um quadro regulamentar para delimitar as ações que podem ser determinadas ou executadas pelas máquinas?
Este processo não se passa apenas em algumas regiões – é um processo à escala mundial. O que queremos é formar mais pessoas, porque, se vivemos numa economia e numa sociedade democrática e aberta, estamos suscetíveis à penetração de outros mercados. Esta é uma área fortemente globalizada e a melhor forma de encarar a globalização é através de mais formação e qualificação, que nos permita sermos fontes de produção deste novo conhecimento.
A infoexclusão é outro dos desafios do Incode2030… Será que a única forma de levar as pessoas que não gostam de Internet e de computadores passa pela migração dos serviços para o ambiente virtual?
Julgo que é algo que está a acontecer cada vez mais e por isso contamos apresentar uma série de projetos ao nível de freguesias e autarquias ao nível do País… com vista à criação de comunidades criativas que servem, sobretudo, para inclusão das pessoas – dos mais velhos aos mais novos. Há exemplos em todo o País particularmente interessantes que permitem mobilizar cada vez mais as pessoas. Hoje, boa parte da nossa cidadania passa muito por uma participação ativa e de acesso ao conhecimento nos mais variados meios, que estão sempre a mudar. O que fazemos hoje é diferente daquilo que fazíamos há cinco anos e aquilo que vamos fazer dentro de dois ou cinco anos vai ser completamente diferente daquilo que fazemos hoje. A inclusão pretende facilitar o acesso às mais variadas tecnologias e às práticas sociais que emergem em todo o mundo e que fazem parte do esforço de inclusão.