Pode um decreto-lei ser aprovado duas vezes pelos mesmos deputados sem uma única alteração ao texto? Sim, pode acontecer, está previsto nas leis do País – e só mesmo uma muito inesperada mudança de planos de última hora impedirá esta “dupla aprovação” de acontecer na próxima sexta-feira, quando as bancadas do PSD e do CDS-PP forçarem o Presidente da República à promulgação do decreto-lei que estende as taxas da cópia privada a todos os equipamentos com capacidade para armazenar e replicar músicas, vídeos, ou software.
«Para a maioria, o diploma não pode ser visto isoladamente. Há que ter em conta o conjunto de diplomas que aprovámos com o objetivo de regular as sociedades de gestão de direitos de autor. Há alterações que efetuámos noutros diplomas que também tiveram em conta o que já consta no decreto-lei da cópia privada. Por isso não consideramos que o nosso pedido de reapreciação seja uma afronta ao Presidente da República», explica Ana Sofia Bettencourt, deputada do PSD que tem vindo a liderar o processo relativo à Cópia Privada.
É um momento raro na democracia portuguesa: as maiorias reforçadas, que obrigam o Presidente da República a promulgar em oito dias um diploma que havia vetado antes, costumam ser evitadas pela tensão política que lhes está inerente. O Presidente da República dificilmente escapará a essa tensão quando chegar o dia de assinar o nome de Aníbal Cavaco Silva num diploma que lhe suscitou «dúvidas em matéria de equidade e eficiência», pelo facto de serem «onerados equipamentos independentemente do destino que lhes seja dado».
O presidente não será o único interveniente político que será obrigado a dar seguimento ao diploma a contragosto. Dentro do PSD, alguns deputados já criticaram em público ou sob anonimato as taxas da cópia privada – mas a disciplina de voto não será suspendida na próxima sexta-feira. Até porque a aprovação do diploma é, provavelmente, a maior vitória política de que Jorge Barreto Xavier, secretário de Estado da Cultura, se pode orgulhar no termo da legislatura que se avizinha – ou não tivesse este dossiê 10 anos de polémica e uma iniciativa fracassada, que foi proposta pela deputada socialista Gabriela Canavilhas.
O CDS só deverá pronunciar-se amanhã, mas são vários os sinais que levam a acreditar que o sentido de voto será igual à primeira votação, que ocorreu em fevereiro: Michael Seufert, um dos dois deputados centristas que votaram contra as taxas, já não é, há vários meses, o responsável do partido para esta matéria; o diploma resulta de uma iniciativa do Governo, que também é suportado pelo CDS-PP; e mais importante ainda, se o documento é o mesmo e não tem sequer uma única vírgula alterada, por que razão haveriam os deputados centristas votar de forma diferente?
Inês de Medeiros também confirma que não há muita margem de manobra para mudar o sentido de voto da bancada socialista: «Vamos manter a abstenção. Não houve qualquer alteração no texto, por isso, não faz sentido alterar o sentido de voto».
A deputada socialista aproveita ainda para questionar o alcance prático do veto presidencial: «Não houve mais debate porque o Presidente da República não apresentou qualquer fundamentação técnica no veto. Mas não se pode dizer não houve debate antes. Todas as entidades com interesse nesta matéria foram ouvidas».
Uma coisa é certa: BE e PCP vão votar contra. A estes votos deverão ainda juntar-se os dos 13 deputados do PS que votaram contra, e os dois deputados do CDS-PP, que a avaliar pela lógica de “em texto igual não se muda o voto”, também deverão contrariar o voto da respetiva bancada parlamentar. A estes poderão ainda juntar-se os faltosos – um fator imponderável que poderá não ser suficiente para impedir que o diploma alcance, pelo menos, os 116 votos a favor.
Quando entra em vigor?
Com a maioria dos votos, a assinatura presidencial e a publicação em Diário da República, bastarão 30 dias para que as taxas se estendam a todos os equipamentos eletrónicos. Tendo em conta que se mantém os prazos de entrada em vigor de uma lei anterior, tudo leva a crer que a lei passará a ser aplicada depois de 20 de junho, com alguma margem de erro derivada da contabilização dos fins de semana e as datas em que o diploma será enviado de São Bento para Belém.
As taxas variam com a capacidade de armazenamento e, consoante as famílias de equipamentos, contemplam três tetos máximos de 7,5, 15 e 20 euros. Eis um exemplo dos efeitos esperados, fornecido atempadamente pela secretaria de Estado da Cultura: Para um telemóvel de 8 GigaBytes (GB) prevê-se uma taxa de 0,96 euros; um tablet com capacidade de armazenamento de 16 GB deverá ter uma taxa de 1,92 euros; mas um computador ou um disco rígido externo com capacidades de um TeraByte (TB, 1024 vezes um GB) já serão taxados a quatro euros. Estes valores são revistos de dois em dois anos.
A lei diz que as taxas têm de ser aplicadas aquando da primeira transação efetuada em território nacional. Tendo em conta que a esmagadora maioria dos equipamentos e gadgets provém do estrangeiro, serão os revendedores e os importadores que terão de desembolsar os montantes relativos às taxas da cópia privada – ainda antes de fazerem qualquer venda ao consumidor. O que não significa que os preços praticados nas lojas não vão mudar.
José Valverde, diretor da Associação Empresarial dos Sectores Elétrico, Eletrodoméstico, Fotográfico e Eletrónico (AGEFE), reitera que a decisão de cobrir o acréscimo de preço causado pela taxa cabe a cada importador. «O setor das TIC e da Eletrónica de Consumo já pratica margens muito baixas, que impedem a absorção dos valores das taxas pelos fabricantes e importadores de equipamentos de tecnologias de informação e comunicação. Não nos podemos esquecer que haverá equipamentos que terão uma taxa que pode representar mais de 10% do PVP, como é o caso de uma impressora para uso doméstico que custa, hoje, 60€», refere o responsável da AGEFE por e-mail.
Cópia privada não é pirataria
Os 15 a 20 milhões de euros que, segundo a secretaria de Estado da Cultura, deverão ser coletados anualmente seguirão para a Associação de Gestão da Cópia Privada (AGECOP), que deverá redistribuir os montantes por autores, produtores e editores, e intérpretes a título de compensação das cópias de âmbito privado. Pode parecer um pormenor, mas não é: cópia privada não é o mesmo que pirataria (ou cópia não autorizada).
O conceito de cópia privada, tal como hoje é conhecido pelas diretivas da UE, pressupõe que o autor (ou editor ou outros representantes) é o detentor absoluto das obras que produz, que tem o poder de proibir toda e qualquer cópia. Só que a mesma diretiva europeia de harmonização do direito de autor (2001/29/EC) que contempla a proibição de cópia absoluta também prevê várias exceções – desde que devidamente remuneradas. É assim que nasce o conceito de taxa da cópia privada: o consumidor paga, aquando da compra de um equipamento de leitura ou gravação de dados, uma taxa que lhe dá direito para poder copiar no computador as músicas que tem num DVD ou para instalar uma cópia de segurança de uma aplicação que pretende usar em dois locais distantes.
A lei pode respeitar as diretivas europeias e cumprir os desígnios do Governo, mas ontem, numa conferência de imprensa que reuniu representantes dos importadores, revendedores e operadores de telecomunicações, houve quem lembrasse que, em Espanha, as taxas foram abolidas (e a compensação de autores passou para o orçamento de Estado) e que no Reino Unido, simplesmente, se optou por acabar com qualquer tipo de compensações.
AGEFE, APED e APRITEL também questionam a legalidade da AGECOP, enquanto entidade que recebe e redistribui taxas, e lembram que a Comissão Europeia já prometeu intervir na matéria, e que as tendências de consumo estão a mudar, com uma crescente migração para o cloud computing (que limita muito as cópias privadas).
Nenhum destes argumentos demove o Governo e a bancada social democrata. E a vitória no combate entre os representantes da indústria tecnológica de Silicon Valley, em São Francisco, e os representantes da indústria de Hollywood, de Los Angeles, dificilmente escapará a estes últimos. «Em março, o Tribunal de Justiça Europeu deu a conhecer jurisprudência que diz que as compensações são devidas aos autores e que cabe aos estados-membros legislar sobre a matéria. Esta é uma lei que já está 10 anos atrasada», conclui Ana Sofia Bettencourt.